Guimarães Rosa: Estórias e gatos


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Hoje a casa do Ler para Contar ganhou um novo habitante, um gatinho persa. Pensei em escrever algo sobre a obra de Guimarães Rosa, um declarado amante de gatos. Grande Sertão Veredas, a obra-prima do autor, é pesado demais para um sábado à noite. No livro “Primeiras Estórias”, Guimarães está mais acessível, em pequenos contos. Num deles, o de abertura, o escritor narra a experiência – comum a muitos de nós, certamente – de um menino que vai ao sítio e tem o primeiro contato com um peru. A magia do animal encanta o menino, que faz do peru o seu grande amigo. A decepção da criança ao saber que o seu amado bichinho havia se tornado jantar acabou levando o pai a arrumar-lhe outro. Transcrevo a parte final do conto, o “reencontro” com a alegria. Magistral, espero que gostem.

“De volta, não queria sair mais ao terreirinho, lá era uma saudade abandonada, um incerto remorso. Nem ele sabia bem. Seu pensamentozinho estava ainda na fase hieroglífica. Mas foi, depois do jantar. E – a nem espetaculosa surpresa – viu-o, suave inesperado: o peru, ali estava! Oh, não. Não era o mesmo. Menor, menos muito. Tinha o coral, a arrecauda, a escova, o grugrulhar grufo, mas faltava em sua penosa elegância o rechacho, o englobo, a beleza esticada do primeiro. Sua chegada e presença, em todo o caso, um pouco consolavam.
Tudo se amaciava na tristeza. Até o dia; isto era: já o vir da noite. Porém, o subir da noitinha é sempre e sofrido assim, em toda a parte. O silêncio saía de seus guardados. O Menino, timorato, aquietava-se com o próprio quebranto: alguma força, nele, trabalhava por arraigar raízes, aumentar-lhe alma.
Mas o peru se adiantava até à beira da mata. Ali adivinhara – o quê? Mal dava pra se ver, no escurecendo. E era a cabeça degolada do outro, atirada ao monturo. O Menino se doía e se entusiasmava.
Mas, não. Não por simpatia companheira e sentida o peru até ali viera, certo, atraído. Movia-o um ódio. Pegava de bicar, feroz, aquela outra cabeça. O Menino não entendia. A mata, as mais negras árvores, eram um montão demais; o mundo.
Trevava.
Voava, porém, a luzinha verde, vindo mesmo da mata, o primeiro vagalume. Sim, o vagalume, sim, era lindo! – tão pequenino, no ar, um instante só, alto, distante, indo-se. Era, outra vez em quando, a Alegria.” (ROSA, Guimarães. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.)

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  1. Anônimo