A Cantata de Piñon


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Nélida Piñon é uma escritora brasileira que traz o sangue espanhol nas veias e, por isso, escreve com alma e paixão. O seu romance Vozes do Deserto nos remete a um Oriente repleto de fantasia, perfumes e perversões. Acompanhamos a pobre Sherazade na sua tarefa diária de encantar o califa, como uma brincadeira diária para enganar a morte. Nélida também é contista, e exímia contista! Hoje, transcrevo um trecho do conto Cantata, publicado na coletânea Cortejo do Divino e Outros Contos Escolhidos. O dia está chuvoso e triste.  Espero que gostem e que as palavras dela possam aquecer um pouco os nossos pobres corações chuvosos.


Era casada com meu pai, aquela mulher. Ela sabia que eu a desejei desde o primeiro instante, quando ele a trouxe até mim dizendo:
- Esta agora é minha mulher.
Sem mais palavras abandonou-nos solitários com o nosso pavor e nosso desejo. Ela, mais valente do que eu, disfarçava melhor. Ria na frente do pai, e parecia sua felicidade produzir-se por ele.
Até o dia em que íamos pela praia, o pai e o povo todo atrás descobrindo coisas tolas, que só a eles interessavam. Conosco era diferente, lutávamos para implantar o desprezo, que jamais viessem a descobrir o que nos dominava. As águas molhavam os pés da mulher, esta coisa inocente das águas descuidadas, sem qualquer consequência. Mas exatamente esse movimento agia em mim como se eu a houvesse implantado nua no mundo, pondo-me convulso à medida que sua carne se distinguia, iluminada, estranha, perpétua.
Como se não me importasse com seu corpo que as águas perpetuavam com esplêndida transitoriedade, assumi o desgosto profundo do prazer que eu temia não dominar naqueles instantes...
(Nélida Piñon, Cantata, O Cortejo do Divino e Outros Contos Escolhidos. LPM Pocket)

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  1. Anônimo