Archive for novembro 2011
No dia 30 de novembro, todos os anos, não me permito ficar triste. É o dia mais alegre do ano. Sempre é corrido, inúmeras demandas, pequenos afazeres do cotidiano, mas a sensação de que o dia foi feito para ser bom supera todo o cansaço. Hoje gostaria de falar sobre a poesia musical de Cole Porter como uma forma de comemorar esse estado de espírito. Cole sempre cantou o amor de uma forma sofisticada e sensível, inspirado na Paris da primeira metade do século XX. O filme Delovely retrata bem “os amores da vida de Cole Porter”, tendo a Ashley Judd no papel da impecável Linda. Vale a pena assistir, se emocionar com a trilha sonora, pensar nas festas regadas a champagne e boa música na capital do amor. A vida de Cole é feliz, trágica, com momentos de glamour e momentos de solidão. Ensina que, afinal, o caminho nunca pode ser feito no mesmo tom. Atenção à cena da festa de réveillon, quando, à meia-noite, os fogos saltitam ao fundo da Tour Eiffell. Sejamos felizes com boa música hoje!
on Citações
Cortar o tempo
Por Carlos Drummond de Andrade
Quem teve a idéia de cortar o tempo em fatias,
a que se deu o nome de ano,
foi um indivíduo genial.
Industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustão.
Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos.
Aí entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez, com outro número e outra vontade de acreditar que daqui pra diante vai ser diferente.
on Reflexos
Hoje o dia começou com chuva. Uma chuva fina e inesperada, que caiu durante algumas horas, murmurando sobre os telhados. Pensei que era dia de trocar a pele, no ritual anual de renovação. O reflexo no espelho sorriu: você está mais cansada, ganhou aquela ruguinha sob o olho direito, o cabelo cresceu, liso, cheirando a perfume de incenso. Sorri para esta que me reflete: não está tão mal essa estrada, apesar de tortuosa. A tarde chegou implacável com sol dourado, intenso; não parecia ter havido chuva há poucas horas. O reflexo no espelho, outra vez, me sorri e cita Françoise Sagan: Bonjour, tristesse! Hoje eu poderia me recolher toda, como ostra, à minha tentativa de renascimento. Uma ostra com olhos que brilham. Bom dia, tristeza. Seja bem-vindo, novo ano.
S. Castor
on Citações, Literatura Brasileira
LUA ADVERSA
Por Cecília Meireles
Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.
Fases que vão e vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.
E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...
Nélida Piñon é uma escritora brasileira que traz o sangue espanhol nas veias e, por isso, escreve com alma e paixão. O seu romance Vozes do Deserto nos remete a um Oriente repleto de fantasia, perfumes e perversões. Acompanhamos a pobre Sherazade na sua tarefa diária de encantar o califa, como uma brincadeira diária para enganar a morte. Nélida também é contista, e exímia contista! Hoje, transcrevo um trecho do conto Cantata, publicado na coletânea Cortejo do Divino e Outros Contos Escolhidos. O dia está chuvoso e triste. Espero que gostem e que as palavras dela possam aquecer um pouco os nossos pobres corações chuvosos.
Era casada com meu pai, aquela mulher. Ela sabia que eu a desejei desde o primeiro instante, quando ele a trouxe até mim dizendo:
- Esta agora é minha mulher.
Sem mais palavras abandonou-nos solitários com o nosso pavor e nosso desejo. Ela, mais valente do que eu, disfarçava melhor. Ria na frente do pai, e parecia sua felicidade produzir-se por ele.
Até o dia em que íamos pela praia, o pai e o povo todo atrás descobrindo coisas tolas, que só a eles interessavam. Conosco era diferente, lutávamos para implantar o desprezo, que jamais viessem a descobrir o que nos dominava. As águas molhavam os pés da mulher, esta coisa inocente das águas descuidadas, sem qualquer consequência. Mas exatamente esse movimento agia em mim como se eu a houvesse implantado nua no mundo, pondo-me convulso à medida que sua carne se distinguia, iluminada, estranha, perpétua.
Como se não me importasse com seu corpo que as águas perpetuavam com esplêndida transitoriedade, assumi o desgosto profundo do prazer que eu temia não dominar naqueles instantes...
(Nélida Piñon, Cantata, O Cortejo do Divino e Outros Contos Escolhidos. LPM Pocket)
Katherine Mansfield foi uma escritora da Nova Zelândia que escreveu contos como ninguém. Morreu em 1923. Deixo-os com um trecho do conto Bliss, porque gostaria de compartilhar – com Bertha – esse sentimento de absoluta felicidade.
Embora Bertha Young já tivesse trinta anos, ainda havia momentos como aquele em que ela queria correr, ao invés de caminhar, executar passos de dança subindo e descendo da calçada, rolar um aro, atirar alguma coisa para cima e apanhá-la novamente, ou ficar quieta e rir de nada: rir, simplesmente.
O que pode alguém fazer quando tem trinta anos e, virando a esquina de repente, é tomado por um sentimento de absoluta felicidade — felicidade absoluta! — como se tivesse engolido um brilhante pedaço daquele sol da tardinha e ele estivesse queimando o peito, irradiando um pequeno chuveiro de chispas para dentro de cada partícula do corpo, para cada ponta de dedo?
Não há meio de expressar isso sem parecer "bêbado e desvairado?" Ah! como a civilização é idiota! Para que termos um corpo, se somos obrigados a mantê-lo encerrado em uma caixa, como se fosse um violino raro, muito raro?
O que pode alguém fazer quando tem trinta anos e, virando a esquina de repente, é tomado por um sentimento de absoluta felicidade — felicidade absoluta! — como se tivesse engolido um brilhante pedaço daquele sol da tardinha e ele estivesse queimando o peito, irradiando um pequeno chuveiro de chispas para dentro de cada partícula do corpo, para cada ponta de dedo?
Não há meio de expressar isso sem parecer "bêbado e desvairado?" Ah! como a civilização é idiota! Para que termos um corpo, se somos obrigados a mantê-lo encerrado em uma caixa, como se fosse um violino raro, muito raro?
(Trecho do conto Felicidade, de Katherine Mansfield, publicado no Brasil pela editora Cosac Naify)
Hilda Hilst não é uma poetisa fácil. Esse poema, apesar de um pouco hermético, é muito bonito, especialmente a última estrofe. A imagem do amante tateando o corpo que desfalece e deixará de existir (em breve) como objeto de atenção é dolorida, mas verdadeira. Sempre voltando aos mesmos temas, sempre presa a divagações sobre o amor. Hilda Hilst nasceu em São Paulo, no ano de 1930, e partiu em 2004. Escreveu poesia, prosa e teatro. Vivia recolhida em uma simpática casa de campo, alheia à “confraternização diária” da cidade grande.
Por Hilda Hilst
Tateio. A fronte. O braço. O ombro.
O fundo sortilégio da omoplata.
Matéria-menina a tua fronte e eu
Madurez, ausência nos teus claros
Guardados.
O fundo sortilégio da omoplata.
Matéria-menina a tua fronte e eu
Madurez, ausência nos teus claros
Guardados.
Ai, ai de mim. Enquanto caminhas
Em lúcida altivez, eu já sou o passado.
Esta fronte que é minha, prodigiosa
De núpcias e caminho
É tão diversa da tua fronte descuidada.
Tateio. E a um só tempo vivo
E vou morrendo. Entre terra e água
Meu existir anfíbio. Passeia
Sobre mim, amor, e colhe o que me resta:
Noturno girassol. Rama secreta.
(In Júbilo, Memória e Noviciado da Paixão)
O escritor italiano Italo Calvino é um dos meus prediletos. Suas obras mais conhecidas – e, sem dúvida, as melhores – são aquelas que constituem uma trilogia da Idade Média, formada por O Visconde Partido ao Meio, O Barão nas Árvores e O Cavaleiro Inexistente. São obras que retratam o medievo na região que, hoje, conhecemos por Itália. Agilulfo, o cavaleiro que não existe, é um personagem cativante: cuidadoso, obsessivo com a ordem militar, gentil, capaz de deixar todas as mulheres completamente apaixonadas – só tem um defeito, o de não existir. Os livros, ora cômicos, ora trágicos, nos fazem pensar, rir e chorar, num mundo de sonho que só a literatura fantástica pode nos trazer.
Hoje o foco não é a trilogia medieval de Calvino, mas o último livro publicado pelo autor em vida: Palomar. O personagem cujo nome dá título à obra é um singelo observador do cotidiano e tem uma sensibilidade especial para perceber detalhes no mundo que olhos mais apressados não são capazes de enxergar. Quis falar de Palomar porque há um momento no livro que não deixa de vir à minha cabeça nesta segunda-feira: Palomar boiando, no mar, olhando o céu, completamente absorto nos seus próprios pensamentos, recolhido em si, no meio da imensidão. Fica a dica de leitura para um dia de muito sol e pouca disposição.
Acordei em tempo de encontrar, ainda, no céu, a hora lilás. Hora em que ainda não é dia, mas a noite amansou, esmaeceu. No céu, uma aquarela dançante de azuis, róseos, amarelos, lilases. Livre de qualquer ideia de permanência, a hora do nascer do sol é uma lembrança de que o belo é transitório e arrebatador. Nada mais bonito que ouvir Erik Satie nesses momentos de lirismo e falta.
Passei toda a noite, sem dormir, vendo, sem espaço, a figura dela,
E vendo-a sempre de maneiras diferentes do que a encontro a ela.
Faço pensamentos com a recordação do que ela é quando me fala,
E em cada pensamento ela varia de acordo com a sua semelhança.
Amar é pensar.
E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela.
Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão nela.
Tenho uma grande distração animada.
Quando desejo encontrá-la
Quase que prefiro não a encontrar,
Para não ter que a deixar depois.
Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero.
Quero só Pensar nela.
Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar.
E vendo-a sempre de maneiras diferentes do que a encontro a ela.
Faço pensamentos com a recordação do que ela é quando me fala,
E em cada pensamento ela varia de acordo com a sua semelhança.
Amar é pensar.
E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela.
Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão nela.
Tenho uma grande distração animada.
Quando desejo encontrá-la
Quase que prefiro não a encontrar,
Para não ter que a deixar depois.
Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero.
Quero só Pensar nela.
Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar.
Fernando Pessoa, da obra Pastor Amoroso, na pele de Alberto Caeiro
on Divagação
Sábado de muito sol. O mar um pouco revolto, mas contínuo e constante em seu ir-e-vir. Respiro pausadamente durante alguns minutos. Percebo que é a primeira oportunidade em dias. Fecho os olhos, sinto o gosto do mar nos lábios, tenho um sonho acordada, decido permanecer viva. Nas mãos, a página 55 do livro Alessandro Banricco, mas me falta a vontade de vestir outra vida que não a minha e desisto da Itália por algumas horas. Prefiro, hoje, ser eu mesma, com roupa de banho, cabelos molhados, pés sujos de areia, aceitando o calor do sol sobre a pele. Como o sol está suave hoje! Não queima, é como um abraço, um terno abraço que não acaba mais. A solidão é uma tarde na praia e é linda.
Robert Doisneau
Você já se imaginou lendo teatro grego antigo para relaxar no final de semana? Querido leitor, reveja seus conceitos! A comédia grega pode ser, sim, divertidíssima, leve e profunda nas reflexões sobre os valores e os papeis sociais. Como o tema de fundo, hoje, é o corpo e o desejo sexual, lembrei de Aristófanes e a sua Lisístrata – A Greve do Sexo. Aristófanes foi um dramaturgo grego que utilizava a comédia e a ironia como forma de provocar uma crítica à sociedade de sua época. É de sua autoria As Vespas e As Nuvens, esta última tendo ninguém menos que Sócrates como personagem.
Na obra Lisístrata: A Greve do Sexo, tem-se a utilização do sexo como arma de gênero. Explico: os homens, numa guerra demorada, ameaçam levar Atenas à completa decadência. Lisístrata lidera uma greve de mulheres, que consiste, exatamente, na recusa em atender a qualquer tipo de demanda sexual de seus maridos até que cheguem à paz. Divirtam-se com o desespero dos pobres atenienses e com a – esperada – decisão de por fim à guerra. A tradução para o português é de Millôr Fernandes, publicada pela LPM Pocket.
CENA
No primeiro plano, de um lado a casa de Lisístrata,
do outro a de Cleonice. Ao fundo, a Acrópole.
Um caminho estreito e cheio de curvas
conduz até lá. No meio dos rochedos, em segundo
plano, a gruta de Pã. Lisístrata anda
pra lá e pra cá, diante da casa.
LISÍSTRATA – Pois é. Se tivessem sido convidadas
para uma festa de Baco isso daqui estaria
intransitável de mulheres e tamborins. Mas,
como eu disse que a coisa era séria, nenhuma
apareceu até agora. Só pensam em bacanais.
Hei, Cleonice! Bom-dia, Cleonice!
CLEONICE – Bom-dia, Lisístrata. Magnífico dia
para uma bacanal.
LISÍSTRATA – Cleonice, pelo amor de Zeus:
Baco já deve andar cansado.
CLEONICE – Que aconteceu, boa vizinha? Tens
a expressão sombria, um olhar cheio de repreensão,
a testa franzida. O avesso de uma máscara
de beleza.
LISÍSTRATA – Oh, Cleonice, meu coração está
cheio de despeito. Me envergonho de ser mulher.
Sou obrigada a dar razão aos homens,
quando nos tratam como objetos, boas apenas
para os prazeres do leito.
CLEONICE – E às vezes nem isso. Cibele, por
exemplo...
LISÍSTRATA – (Repreensiva.) Por favor, Cleonice.
(Pausa.) Não é hora para maledicências.
(Pausa.) No momento em que foram convocadas
para uma decisão definitiva na vida do
país, preferem ficar na cama em vez de atender
aos interesses da comunidade.
CLEONICE – Calma, Lisinha! Você sabe como
é difícil para as donas-de-casa se livrarem dos
compromissos domésticos. Uma tem que ir ao
mercado, outra leva o filho à academia, uma
terceira luta com a escrava preguiçosa que às
6 da manhã ainda não levantou. Sem falar no
tempo que se perde limpando o traseiro irresponsável
das crianças.
LISÍSTRATA – Mas eu avisei que deixassem
tudo. A coisa aqui é muito mais urgente. Muito
maior.
CLEONICE – Tão grande assim?
LISÍSTRATA – Acho que nenhuma de nós jamais
encarou nada tão grande. Ou nos reunimos e
enfrentamos juntas ou ela nos devora.
CLEONICE – Mas, então, se você mostrou a elas
a exata dimensão da coisa, não compreendo
que não tenham vindo logo correndo, todas!
Fala-se sobre amor desde o começo dos tempos. Nos textos literários da Antiguidade Clássica, há preciosidades na produção teatral e poética que nos falam sobre a beleza, a dor e a confusão relacionadas à capacidade que o espírito tem de sucumbir diante de um objeto de desejo e destinar-lhe toda a atenção, afeto e expectativa, eis o amor.
Amor é, em primeiro lugar, potência, energia, capacidade de entrega num nível puramente espiritual. Sempre fomos condicionados a limitar o amor a essa vivência ideal, mas e o corpo? Amor e corpo, amor e sexo, amor e desejo, são relações inteiramente distintas? Por que se relaciona – quase que inconscientemente – sexo à vulgaridade, o desejo físico a sentimentos impuros? Ama-se e admira-se, ama-se e cuida-se, ama-se e deseja-se, me parece. A humanidade que habita em nós não cuida da dicotomia entre o amor espiritual e o desejo sexual.
Como o sexo vem tratado na literatura? Quando o texto deixa de ser literatura e torna-se pornografia? Perguntas que renderão vários posts, para o futuro.
Reflitamos com o Walt Whitman, em seu texto Uma mulher me espera.
Sex contains all, bodies, delicacies, results, promulgations,
Meanings, proofs, purities, the maternal mystery, the seminal milk,
All hopes, benefactions, bestowals, all the passions, loves, beauties, delights of the earth,
All the governments, judges, gods, follow’d persons of the earth,
These are contain’d in sex as parts of itself and justifications of itself.
P.S. Não me atrevi a desfazer a beleza literária do texto com uma tradução livre e apressada. Deixo o dever ao querido Raul Nepomuceno, partícipe deste blog, gerente de marketing e que, entre outros talentos, sabe inglês como ninguém. Quando ele me mandar, publico aqui.
Ufa! Mal respirei nas últimas doze horas e peço desculpas pela “demora” entre o último post e este que segue. Hoje escolhi como objeto de reflexão o amor do corpo, o desejo, a vivência do prazer. É sempre muito difícil explicar o resultado dessas escolhas sobre o que publico, não há qualquer método ou lógica, é o puro resultado de uma mente divagante. Antes de deixar com vocês a postagem que eu quero (e ainda não consegui) escrever sobre o corpo, o desejo e a literatura, introduzo a questão com um poema do Drummond, publicado na obra O amor natural, onde o poeta tematiza sexo, a nudez, esse amor de entendimento de que falava Manuel Bandeira.
Mulher andando nua pela casa
Por Carlos Drummond de Andrade
Mulher andando nua pela casa
envolve a gente de tamanha paz.
Não é nudez datada, provocante.
É um andar vestida de nudez,
inocência de irmã e copo d’água.
O corpo nem sequer é percebido
pelo ritmo que o leva.
Transitam curvas em estado de pureza,
Dando este nome à vida: castidade.
Pelos que fascinavam não perturbam.
Seios, nádegas (tácito armistício)
Repousam de guerra. Também eu repouso.
on Reflexos
Acordamos. Respiramos. Constatamos que o céu continua da mesma cor, que os carros permanecem na corrida diária rumo a lugar nenhum, que o porteiro chegou às seis da manhã e agora boceja na guarita abafada. O café com gosto de pasta de dente, o relógio avisa que o tempo, inexoravelmente, está passando. Passa. Passa. Passa. Passa. O tic tac permanente, que tem permanecido desde o começo dos tempos, eu suspeito.
Um espírito completamente imprestável para a burocracia do cotidiano adormece em casa enquanto o corpo – braços, olhos, cabelos, boca – sai para o trabalho. O trabalho com suas vozes, demandas, conflitos, repousos. Até que acabe tudo, o mundo se recolha à melancolia da noite alta, e o espírito, domesticado pelo dia no silêncio da casa vazia, reencontre corpo cansado, que, enfim, volta.
Henri-Cartier Bresson
Hoje acordei com uma fadiga mental daquelas! Um sentimento de inadequação. Vocês já se sentiram fora do mundo? Vinícius de Moraes nos fala, hoje, sobre os efeitos do tempo nos nossos espíritos cansados.
Poética
De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.
A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.
Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem
Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
– Meu tempo é quando.
on Citações, Literatura Brasileira
Andorinha
Andorinha lá fora está dizendo:
— "Passei o dia à toa, à toa!"
Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa . . .
Saramago também foi cronista, deixo um trecho de “Natalmente crónica” (assim mesmo, à portuguesa):
“Vai o ano correndo manso entre noites e dias, entre nuvens e sol, e quando mal nos precatamos, chegamos ao fim, e é natal. Para incréus empedernidos como eu sou, o caso não tem assim tanta importância: é mais uma das trezentas mil datas assinaladas de que se servem inteligentemente as religiões para aferventar crenças que no passar do tempo se tornariam letra morta e água chilra. Mas o natal (tal como as primeiras andorinhas, o carnaval, o começo das aulas, e outras efemérides do estilo) está sempre à coca da atenção ou da penúeria do cronista, para que se repitam, pela bilionésima vez na história da imprensa, as banalidades da ocasião: a paz na terra, os homens de boa vontade, a família, o bolo-rei, a mensagem evangélica, o ramo de azevinho, o Menino Jesus nas palhinhas, etc., etc. E o cronista, que no fundo é um pobre diabo a quem às vezes falta o assunto, não resiste à conspiração sentimental da quadra, e bota a fala de circunstância”
José Saramago, A Bagagem do Viajante, Cia das Letras, 2006, pg. 95
on Leitura
Muitas vezes, na loucura do cotidiano, não temos tempo para dedicar à leitura de romances, de grandes ensaios, ou daquela epopeia. Sempre é bom ter à mão um livro de textos curtos e leves, para ler nos intervalos do dia, algumas linhas, poucas páginas, só para o espírito não se sentir tão vazio de significados. A crônica cumpre muito bem esse papel, sendo um gênero literário tipicamente brasileiro. Segundo o Aurélio, a crônica se define como “pequeno conto, de enredo indeterminado” ou “texto jornalístico de forma livre e pessoal”. Muitos dos nossos escritores consagrados tinham como atividade diária ou semanal o compromisso de publicar nos grandes veículos de circulação sua crônica sobre o cotidiano.
Hoje deixo a dica de algumas coletâneas de crônicas que podem servir de começo para esse hábito diário de leitura.
Boca de Luar, Carlos Drummond de Andrade, Record, 2009
Não preciso de qualquer descrição, é gênio.
- Você tem boca de luar, disse o rapaz para a namorada, e a namorada riu, perguntou ao rapaz que espécie de boca é essa, o rapaz respondeu que é uma boca toda enluarada, de dentes muito alvos e leitosos, entende?
Em Boa Companhia: Crônicas, coletânea de vários autores publicada pela Cia das Letras, com seleção de Humberto Werneck, ótima opção para quem quer conhecer os melhores cronistas a partir de uma seleção organizada por ordem cronológica.
O Conde e o Passarinho, Rubem Braga, Record, 2002
Rubem Braga é considerado o maior cronista da história da literatura brasileira e pode-se dizer que ele dedicou sua carreira literária a esse gênero. Seus textos versam sobre temas diversificados como o amor, a corrupção, a saudade, o cotidiano. Nesta coletânea específica, recomendo a crônica que dá nome ao livro, chamada “O Conde e o Passarinho”, que é de uma delicadeza encantadora.
As Melhores Crônicas, Fernando Sabino, Record, 1997
Fernando Sabino é um dos poucos escritores que eu considero “certos”, isto é, incapazes de publicar qualquer coisa que não seja de boa qualidade. Além de romancista, foi um exímio cronista, e recomendo todas as coletâneas editadas pela editora Record.
on Citações, Literatura Brasileira
Um pedacinho da crônica magnífica de Rubem Braga, exímio observador do cotidiano.
“Sim, eu sou um desaparecido cuja esmaecida, inútil foto se publica num canto de uma página interior de jornal, eu sou o irreconhecível, irrecuperável desaparecido que não aparecerá mais nunca, mas só tu sabes que em alguma distante esquina de uma não lembrada cidade estará de pé um homem perplexo, pensando em ti, pensando teimosamente, docemente em ti, meu amor.”
Rubem Braga, da crônica O Desaparecido
Para termos um fôlego nesse fim de tarde.
Há semanas tenho refletido muito sobre o amor e tudo que ele traz: a saudade, o desejo, o êxtase, a alegria, a dor. Hoje gostaria de falar de um autor que adoro e que, acredito, é bastante conhecido entre os leitores brasileiros, Carlos Heitor Cony. Vivo, colunista (polêmico), Cony escreve de forma clara, direta, masculina, mas muito sensível, e sou uma grande admiradora da sua literatura. Livros como Quase Memória são dignos de várias leituras emocionadas, porque falam diretamente ao coração.
Hoje o Cony nos fala sobre a vivência da perda no amor. Quando se entende que o vínculo já se partiu, mas se tem saudade do que já foi, carinho pelos fatos vividos, pelos sentimentos guardados dentro do bolso. No Livro Antes, o verão, o personagem principal vivencia a degradação de sua casa de praia construída em Cabo Frio, que representa o seu relacionamento com a esposa. Ciente da perda que se anuncia, o verão com Maria Clara na casa é uma trégua nesse relacionamento perto do fim.
“Agora, escrevo especialmente para você. Ninguém saberá que é para você que estou escrevendo, e você mesma só sentirá isso depois de muitos, muitos dias, quando a dor e o tempo pousarem sobre seus olhos e tornarem sua carne mais neutra que a nuvem e mais breve que a espuma.
Hoje, escrevo especialmente para você, retomando um diálogo que bruscamente interrompêramos sem saber o que íamos fazer com as palavras que não chegamos a dizer, sem termos tempo de apagar as palavras que foram ditas e – infelizmente – guardadas e protegidas pelo nosso repentino ódio.
Isso poderia ser o início ou fim de um romance – e o é realmente, início e fim ao mesmo tempo. Afinal, terminamos o nosso prazo, esgotamos a clemência que atiramos um ao outro como esmola ou paga – e amanhã fecharemos essas portas e janelas e nunca mais retornaremos, nunca mais repetiremos o rito de verões e invernos que juntos consumimos, apoiados em nossos medos e redimidos em nossas alucinações.”
O fim de ano, o ar de conclusão que vem com dezembro, as esperanças que se anunciam em janeiro, deixam cada um de nós um pouco melancólicos. Há os que tomam decisões extremas, há os que se recolhem, como ostra, esquecidos ao próprio sofrimento, há os que leem poesia e esperam encontrar algum consolo nas palavras do poeta. Triste é quando a poesia é bela, mas igualmente melancólica. Gostaria de seguir o conselho do André-Comte Sponville e conseguir amar, desesperadamente, isto é, amar sem esperar nada, amar simplesmente, puro contentamento. Amor também é falta. Deixo-os com a linda Cantiga de Viúvo.
Cantiga de Viúvo
Carlos Drummond de Andrade
A noite caiu na minh’alma,
fiquei triste sem querer.
Uma sombra veio vindo,
veio vindo, me abraçou.
Era a sombra de meu bem
que morreu há tanto tempo.
Me abraçou com tanto amor
me apertou com tanto fogo
me beijou, me consolou.
Depois riu devagarinho,
me disse adeus com a cabeça
e saiu. Fechou a porta.
Ouvi seus passos na escada.
Depois mais nada...
acabou.
on Citações, Literatura Brasileira
Das Utopias
Por Mário Quintana
Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas!
Hoje tive a oportunidade de avaliar, pela manhã, duas boas monografias que versavam sobre um tema semelhante: paternidade/maternidade socioafetiva. O tema de fundo é a disciplina jurídica dos afetos. Afinal, o que faz de uma mulher ou de um homem uma mãe, um pai? A intangibilidade do amor é um tema com o que direito de família tem que tratar diariamente. A poligamia, o “poliamor”, a união estável. Lembrei de um bom livro que li há um tempo, do autor judeu A. B. Yehoshua, chamado “Viagem ao Fim do Milênio – Romance da Idade Média”, publicado no Brasil pela Cia das Letras. Eis a sinopse da editora:
“Na passagem do milênio cristão, uma pequena caravana liderada pelo mercador Ben-Atar deixa as praias de Tânger, no norte da África, com destino a Paris, a aldeia mais próspera do reino dos francos. A bordo de um velho navio-patrulha, Ben-Atar segue acompanhado de suas duas esposas e do sócio Abu Lutfi. Os comerciantes se preparam para desembarcar mais uma preciosa carga de mercadorias, enquanto esperam ansiosos pelo encontro com o terceiro sócio, Abuláfia, que lhes fará o relatório sobre a venda das mercadorias trazidas no ano anterior. A viagem se dá num contexto histórico definido, nos primórdios do intercâmbio mercantil entre os povos separados pelo Mediterrâneo. Ben-Atar cruza o mar em busca de bons negócios, mas se defrontará com situações que vão muito além da simples troca de mercadorias. Judeu sefaradita, entrará em choque com a tradição asquenaze, para a qual a bigamia é uma prática inaceitável.
Numa recriação brilhante do mundo medieval do século X, A. B.Yehoshua traça os contornos da cultura judaica dividida por duas tradições - a asquenaze e a sefaradita - que ainda hoje demarcam afinidades e diferenças dramáticas para Israel.”
Numa recriação brilhante do mundo medieval do século X, A. B.Yehoshua traça os contornos da cultura judaica dividida por duas tradições - a asquenaze e a sefaradita - que ainda hoje demarcam afinidades e diferenças dramáticas para Israel.”
O tema de fundo é, portanto, a diversidade cultural e a tolerância. A esposa de Abuláfia não aceita o tio do marido, Ben-Atar, (muito bem) casado com duas mulheres. O empreendimento de Ben-Atar para convencer a esposa do sobrinho a retomar as relações familiares – de que dependia a própria sobrevivência das famílias de Ben-Atar – é de uma poesia e encantamento incríveis. Nos faz refletir sobre a solidariedade, sobre a diversidade do amor e dos vínculos, sobre o verdadeiro sentido de família. Afinal, não compreendem as mulheres de Ben-Atar como a esposa de Abuláfia daria conta sozinha do seu marido, sem prejuízo de seu próprio bem-estar. A literatura nos ensina que o mundo pode ser diferente. Eis o tema improvável desta segunda-feira, o "poliamor".
on Citações
Lewis Carroll e o seu Alice no País das Maravilhas sempre foram um desafio. O texto já foi traduzido e reeditado inúmeras vezes e continua despertando a imaginação. S. Albuquerque, autor do blog Fluxo do Pensamento (e, nas horas vagas, marido do Ler para Contar), publicou post interessante sobre a descoberta de ilustrações de Salvador Dalí à obra de Carroll. Deixo-os com o link para o cuidadoso blog do doutor de almas.