Archive for janeiro 2012
O Ler para Contar está mais lento nos últimos dias por vários motivos: mudança inesperada de casa, gripe, organização da volta às aulas, cansaço. Por isso, peço paciência e boa vontade, que vamos tentando levar a literatura num ritmo mais doce que o ritmo da vida-nossa-de-todo-dia, tão maluca, máquina de moer gente. Deixo-os com a linda poesia de Cecília Meireles, publicada na obra Vaga Música. A fotografia para nos fazer sonhar é de Saulo e é, sem dúvidas, a minha preferida entre toda a sua obra.
Mar em Redor
Cecília Meireles
Meus ouvidos estão como as conchas sonoras:
música perdida no meu pensamento,
na espuma da vida, na areia das horas...
Esqueceste a sombra no vento.
Por isso, ficaste e partiste,
e há finos deltas de felicidade
abrindo os braços num oceano triste.
Soltei meus anéis nos aléns da saudade.
Entre algas e peixes vou flutuando a noite inteira.
Almas de todos os afogados
chamam para diversos lados
esta singular companheira.
on Reflexos
Precisava encontrar algo de inspirador para postar hoje. Estive cansada para percorrer os livros, as páginas, as palavras alheias, os amores alheios, os olhares de outros tempos. Sentada, na mesa da sala, o sol das quatro através da janela, pensei que a matéria presente é esta: o gato que dorme, a geladeira que ronrona, a pequena vizinha que saltita nos saltos da mãe no andar de cima. Um passarinho passa voando, canta, e o gato abre lentamente os olhos, observa o voo lento, volta a dormir, como se imaginasse que nem todo esforço vale a pena, que, às vezes, o recolhimento e o repouso são mais importantes que a luta, a corrida, o porvir. É tempo de encaixotar tudo, lembranças, planos, vivências que preencheram esta casa tão minha e já tão outra. É tempo de mudança. O porvir nós olharemos ora deitados, de canto de olho, entre os suspiros de um sono felino, ora alertas, esperançosos, com os pulmões aspirando o ar ruidoso do mundo aí fora, como um gato vadio das meia-noites.
Por que cantamos
Por Mario Benedetti
Se cada hora vem com sua morte
se o tempo é um covil de ladrões
os ares já não são tão bons ares
e a vida é nada mais que um alvo móvel
você perguntará por que cantamos
se nossos bravos ficam sem abraço
a pátria está morrendo de tristeza
e o coração do homem se fez cacos
antes mesmo de explodir a vergonha
você perguntará por que cantamos
se estamos longe como um horizonte
se lá ficaram as árvores e céu
se cada noite é sempre alguma ausência
e cada despertar um desencontro
você perguntará por que cantamos
cantamos porque o rio esta soando
e quando soa o rio / soa o rio
cantamos porque o cruel não tem nome
embora tenha nome seu destino
cantamos pela infância e porque tudo
e porque algum futuro e porque o povo
cantamos porque os sobreviventes
e nossos mortos querem que cantemos
cantamos porque o grito só não basta
e já não basta o pranto nem a raiva
cantamos porque cremos nessa gente
e porque venceremos a derrota
cantamos porque o sol nos reconhece
e porque o campo cheira a primavera
e porque nesse talo e lá no fruto
cada pergunta tem a sua resposta
cantamos porque chove sobre o sulco
e somos militantes desta vida
e porque não podemos nem queremos
deixar que a canção se torne cinzas.
se o tempo é um covil de ladrões
os ares já não são tão bons ares
e a vida é nada mais que um alvo móvel
você perguntará por que cantamos
se nossos bravos ficam sem abraço
a pátria está morrendo de tristeza
e o coração do homem se fez cacos
antes mesmo de explodir a vergonha
você perguntará por que cantamos
se estamos longe como um horizonte
se lá ficaram as árvores e céu
se cada noite é sempre alguma ausência
e cada despertar um desencontro
você perguntará por que cantamos
cantamos porque o rio esta soando
e quando soa o rio / soa o rio
cantamos porque o cruel não tem nome
embora tenha nome seu destino
cantamos pela infância e porque tudo
e porque algum futuro e porque o povo
cantamos porque os sobreviventes
e nossos mortos querem que cantemos
cantamos porque o grito só não basta
e já não basta o pranto nem a raiva
cantamos porque cremos nessa gente
e porque venceremos a derrota
cantamos porque o sol nos reconhece
e porque o campo cheira a primavera
e porque nesse talo e lá no fruto
cada pergunta tem a sua resposta
cantamos porque chove sobre o sulco
e somos militantes desta vida
e porque não podemos nem queremos
deixar que a canção se torne cinzas.
on Cinema
Começamos o dia falando em cinema italiano. Vamos terminar em grande estilo, com outro filme do magnífico Federico Fellini, o célebre Dolce Vita. A cena é inesquecível, em Roma, com Marcello Mastroianni e Anita Ekberg, gravada na Fontana di Trevi. Silvia (personagem de Anita) encarna a perfeita diva de Hollywood e Marcello dá vida ao paparazzo italiano boa-pinta. Minha personagem favorita é a enigmática Madalena. A vida fora do sonho não é vida.
“Marcello, where are you?”
on Cinema, Poesia Musical
O filme Amarcord, de Federico Fellini, é um dos meus favoritos de todos os tempos! Deixo, nesta manhã de sexta, para inspirar e alegrar, a música-tema do filme, de Nino Rota.
on Dramaturgia
Já ouviram falar de Jean-Baptiste Poquelin? E de Molière? O francês é o mestre do teatro cômico e tem divertido leitores e espectadores há séculos. Nascido em 1622, Molière é autor de obras como O Doente Imaginário, Tartufo e Don Juan, todas excelentes e hilárias. Hoje deixamos um trecho de uma das minhas preferidas, chamada Les Femmes Savantes e traduzida pelo Millôr Fernandes como As Eruditas. O bom da referência é que se pode encontrar facilmente os livros nas edições de bolso da L&PM Pocket, que se encontra em qualquer livraria.
A pobre Henriqueta, moça simples que só ambiciona casar e formar família, tem que lidar com a incompreensão de suas irmãs, “eruditas”, que levam a vida a estudar e a buscar a realização. A grande graça é perceber como Molière transforma as personagens “savantes” em vítimas de Tremembó, filósofo de meia tigela cheio de referências falsas. Experimentem! Ler teatro é uma delícia.
(...)
ARMANDA
Não entendo. Não sou versada em povo. De que ditado fala?
CRISTÓVÃO
Quem foi ao vento, perdeu o assento.
ARMANDA
E quem lhe disse que estou interessada no ar ou no lugar? Acho ridículo você assim pensar e impertinente ousar me declarar.
HENRIQUETA
Calma, minha irmã. Onde está a moral
Que domina tão bem nossa parte animal?
Segure as rédeas do teu temperamento. Senão, ele dispara.
ARMANDA
E você, que se atreve a essa ironia, melhor teria feito se,
Antes de aceitar essa corte atrevida,
Escutasse o conselho dos que te deram a vida.
Acho que nem necessito lembrar
Que só eles podem escolher quem você deve amar.
Têm autoridade suprema sobre teu coração
Do qual você não dispõe sem sua permissão.
PROJETO DE PREFÁCIO
Por Mario Quintana
Sábias agudezas... refinamentos...
- não!
Nada disso encontrarás aqui.
Um poema não é para te distraíres
como com essas imagens mutantes de caleidoscópios.
Um poema não é quando te deténs para apreciar um detalhe
Um poema não é também quando paras no fim,
porque um verdadeiro poema continua sempre...
Um poema que não te ajude a viver e não saiba preparar-te para a morte
não tem sentido: é um pobre chocalho de palavras.
- não!
Nada disso encontrarás aqui.
Um poema não é para te distraíres
como com essas imagens mutantes de caleidoscópios.
Um poema não é quando te deténs para apreciar um detalhe
Um poema não é também quando paras no fim,
porque um verdadeiro poema continua sempre...
Um poema que não te ajude a viver e não saiba preparar-te para a morte
não tem sentido: é um pobre chocalho de palavras.
Rainer Maria Rilke é um poeta tcheco nascido em 1875, célebre pela obra poética Elegias de Duíno e pelo livro Cartas a um Jovem Poeta. Falece em 1926, vítima de leucemia, na Suíça. Um grande poeta da Europa Oriental, publicado, no Brasil, pela editora Globo, em edição bilíngue com tradução direto do alemão. Rilke passou uma temporada no castelo de Duíno, local onde, supostamente, Dante teria escrito parte da Divina Comédia. É nesse período no Castelo que nascem as elegias tão vibrantes, para aquecer nossa noite de terça-feira.
Por Rainer Maria Rilke
Amantes, que vos bastais, qual vosso segredo?
Há contato entre vós. Teríeis provas?
Às vezes minhas mãos se reconhecem ou
meu rosto gasto nelas tenta se abrigar.
Isto me dá uma certa consciência de mim mesmo.
Quem, no entanto, por tão pouco ousaria ser?
Mas vós, acrescidos no êxtase um do outro
- até que exausto, um suplique: basta! -, e vós,
cujas mãos descobrem a riqueza dos anos de vinho
e que vos dissolveis para o outro domine,
Pergunto-vos: qual vosso segredo?
on Citações
O mestre máximo do Ler para Contar, Carlos Drummond de Andrade, nos dá o bom dia nesta terça-feira. O vídeo é um pouco longo, mas vale cada segundo. Via Carlos Drummond de Andrade official website.
on Belas Artes
Gustav Klimt (1862-1918) é um pintor de sonhos. O seu universo é o da fantasia, um forte erotismo, a paleta marcada pelos dourados e vermelhos. Um dos meus pintores favoritos. Deixo a obra Serpentes Marinhas, com suas lindas curvas.
Parece haver uma luz no mundo, uma gota de esperança, uma fé no amor. Boa segunda a todos vocês, com os versos do poeta de Alegrete.
Eu queria trazer-te uns versos muito lindos
Por Mario Quintana
Eu queria trazer-te uns versos muito lindos
colhidos no mais íntimo de mim...
Suas palavras
seriam as mais simples do mundo,
porém não sei que luz as iluminaria
que terias de fechar teus olhos para as ouvir...
Sim! Uma luz que viria de dentro delas,
como essa que acende inesperadas cores
nas lanternas chinesas de papel!
Trago-te palavras, apenas... e que estão escritas
do lado de fora do papel... Não sei, eu nunca soube o que dizer-te
e este poema vai morrendo, ardente e puro, ao vento
da Poesia...
como
uma pobre lanterna que incendiou!
colhidos no mais íntimo de mim...
Suas palavras
seriam as mais simples do mundo,
porém não sei que luz as iluminaria
que terias de fechar teus olhos para as ouvir...
Sim! Uma luz que viria de dentro delas,
como essa que acende inesperadas cores
nas lanternas chinesas de papel!
Trago-te palavras, apenas... e que estão escritas
do lado de fora do papel... Não sei, eu nunca soube o que dizer-te
e este poema vai morrendo, ardente e puro, ao vento
da Poesia...
como
uma pobre lanterna que incendiou!
Quantas vezes você já sentou, sozinho, para pensar um pouco sobre as dificuldades da vida, para sonhar acordado, para sentir um pouco de saudade? O poema de Manoel de Barros é para todos os leitores contemplativos neste domingo.
Eu não vou perturbar a paz
Por Manoel de Barros
De tarde um homem tem esperanças.
Está sozinho, possui um banco.
De tarde um homem sorri.
Se eu me sentasse a seu lado
Saberia de seus mistérios
Ouviria até sua respiração leve.
Se eu me sentasse a seu lado
Descobriria o sinistro
Ou doce alento de vida
Que move suas pernas e braços.
Mas, ah! eu não vou perturbar a paz que ele depôs na
praça, quieto.
Está sozinho, possui um banco.
De tarde um homem sorri.
Se eu me sentasse a seu lado
Saberia de seus mistérios
Ouviria até sua respiração leve.
Se eu me sentasse a seu lado
Descobriria o sinistro
Ou doce alento de vida
Que move suas pernas e braços.
Mas, ah! eu não vou perturbar a paz que ele depôs na
praça, quieto.
Para divertir um pouco o nosso sábado, o trechinho inicial de uma crônica do Carlos Drummond de Andrade, sobre a dificuldade das perguntas existenciais. Bom fim de semana a todos!
Gravação
Por Carlos Drummond de Andrade
- Pronto, tá ligado. Posso começar?
- Pode.
- Pode.
- O senhor se sente realizado?
- Por que você quer saber isso?
- Nada não. O Professor é que mandou lhe perguntar.
- O professor tem interesse em saber se eu me sinto realizado?
- Sei não senhor.
- Então diga ao professor que venha me procurar.
- Pra quê?
- Pra eu lhe perguntar se ele se sente realizado.
- O senhor vai perguntar isso a ele?
- Vou.
- O senhor também está estudando? Nessa idade, poxa!
- Que que tem? Toda idade é boa para estudar, a gente não acaba nunca de saber as coisas. Mas não estou estudando não.
- Então por que vai perguntar isso ao professor?
- Porque se ele quer saber se eu me sinto realizado, eu também quero saber a mesma coisa dele. Indiscrição por indiscrição.
Trecho extraído da crônica Gravação, publicada em As Palavras que Ninguém Diz, coletânea publicada na coleção Mineiramente Drummond, Editora Record.
on Belas Artes
A célebre obra Absinto, de Edgar Degas, para retratar um dia nulo e triste. Nesses dias, o melhor é silenciar mesmo.
Uma linda música para celebrar mais um dia chuvoso e repousante. O melhor das letras do Chico é imaginar os personagens que estão nessa história. Boa quinta a todos!
Valsa Brasileira
Por Chico Buarque
Vivia a te buscar
Porque pensando em ti
Corria contra o tempo
Eu descartava os dias
Em que não te vi
Como de um filme
A ação que não valeu
Rodava as horas pra trás
Roubava um pouquinho
E ajeitava o meu caminho
Pra encostar no teu
Porque pensando em ti
Corria contra o tempo
Eu descartava os dias
Em que não te vi
Como de um filme
A ação que não valeu
Rodava as horas pra trás
Roubava um pouquinho
E ajeitava o meu caminho
Pra encostar no teu
Subia na montanha
Não como anda um corpo
Mas um sentimento
Eu surpreendia o sol
Antes do sol raiar
Saltava as noites
Sem me refazer
E pela porta de trás
Da casa vazia
Eu ingressaria
E te veria
Confusa por me ver
Chegando assim
Mil dias antes de te conhecer
Não como anda um corpo
Mas um sentimento
Eu surpreendia o sol
Antes do sol raiar
Saltava as noites
Sem me refazer
E pela porta de trás
Da casa vazia
Eu ingressaria
E te veria
Confusa por me ver
Chegando assim
Mil dias antes de te conhecer
on Reflexos
Chove muito. Uma chuva de tempestade. Céu cinza chumbo, gotas pesadas que tornam o tempo mais espesso, mais macio, como o fluir de um córrego. Dia de descanso para a alma. Explicar a relação de um cearense com a chuva é difícil. Não se ouvirá da boca de ninguém que o dia está feio, cinzento, pesado. Em São Paulo, um céu azul é um convite para a vida e era-me estranho entender o sorriso dos paulistas diante de um céu muito azul, porque céu azul é como as coisas são sempre, certo? Aqui, quando chove, ouvir-se-ão comentários de contentamento ou a simples observação da água que cai, uma sensação de alívio. Não se diga que é a seca, porque água, aqui, há muito e abundante, água domesticada das torneiras e dos chuveiros, água selvagem do mar e dos rios. É a sensação de recomeço, de mudança, a percepção da vida que transcorre. Água é descanso, porque mudança, água é oportunidade para fechar os olhos e ouvir o passar do tempo.
on Japão, Literatura Brasileira
Mais cedo falamos sobre a imigração japonesa no post sobre a fotografia de Haruo Ohara. Lembrei de imediato de um romance ótimo que li há uns meses, do neto de imigrantes japoneses Oscar Nakasato. A obra Nihonjin foi publicada pela Editora Benvirá (Selo do grupo Saraiva) e retrata a saga de Hideo Inabata, que chega ao Brasil na década de 20 com toda a família para enriquecer – sempre pensando em voltar para o Japão e para a família. Uma história comovente e enriquecedora sobre diversidade cultural e autodeterminação. Isso porque os imigrantes japoneses enfrentaram duas dificuldades contraditórias: os brasileiros que acreditavam em sua completa assimilação cultural, e os japoneses mais ortodoxos, que puniam firmemente os que se relacionassem com brasileiros ou demonstrassem interesse pela cultura do Brasil. Para entender a importância do respeito à diferença.
“Os homens de farda arrancaram as folhas dos cadernos e dos livros, fizeram um monte na rua e atearam fogo. As crianças, assustadas, observavam tudo em silêncio. Hideo, impassível, os braços firmes ao longo do corpo, era quase uma estátua.
- O que o professor ensina a vocês? – perguntou um policial a uma das crianças.
- Teijisan, você não precisa responder – orientou Hideo em língua japonesa.
- Ô japa, você não pode falar em japonês! – repreendeu o soldado. – Você não conhece a lei?
- Eu sou japonês, falo em japonês – retrucou Hideo, usando a língua portuguesa.
- É japonês, mas está no Brasil! E aqui no Brasil se fala o português.”
on Belas Artes, Japão
Sou uma grande admiradora da cultura japonesa, tanto pela delicadeza associada a suas representações artísticas, como pelo senso de disciplina e dever construídos desde a infância na personalidade individual dos japoneses. O Brasil é um país-amigo do Japão, dado o fluxo migratório que se iniciou no século XX, focado na região sul e sudeste do país. Haruo Ohara é um fotógrafo filho dessa união entre Brasil e Japão. Nascido em 1909, na província de Kochi, emigrou para o Brasil em 1927, terminando a vida no Paraná, em 1999. Sua fotografia retrata a vida no campo dos lavradores japoneses, a relação familiar, a infância em meio ao verde. Uma fotografia cheia de poesia para começar nossa terça-feira.
Na obra de Haruo Ohara, é possível perceber que os imigrantes japoneses que vieram trabalhar no campo brasileiro tinham por objetivo construir sua história no Brasil sem abandonar os laços culturais com o Japão. Muitos sonhavam com a volta ao Nipon, ao reencontro da família e da pátria.
Boa terça!
* Para quem quiser conhecer mais a fundo a obra de Haruo Ohara, este (ótimo) livro foi publicado pelo Instituto Moreira Sales.
Continuamos com nossa viagem ao Modernismo brasileiro com a poesia de Manuel Bandeira e a tela Arlequim, do Emiliano Di Cavalcanti. Reparem nos temas "populares", no olhar para a gente comum, na representação do povo considerado, pelos poetas e artistas, tipicamente brasileiro.
Balõezinhos
Por Manuel Bandeira
Na feira do arrabaldezinho
Um homem loquaz apregoa balõezinhos de cor:
— "O melhor divertimento para as crianças!"
Em redor dele há um ajuntamento de menininhos pobres,
Fitando com olhos muito redondos os grandes balõezinhos muito redondos.
No entanto a feira burburinha.
Vão chegando as burguesinhas pobres,
E as criadas das burguesinhas ricas,
E mulheres do povo, e as lavadeiras da redondeza.
Nas bancas de peixe,
Nas barraquinhas de cereais,
Junto às cestas de hortaliças
O tostão é regateado com acrimônia.
Os meninos pobres não vêem as ervilhas tenras,
Os tomatinhos vermelhos,
Nem as frutas,
Nem nada.
Sente-se bem que para eles ali na feira os balõezinhos de cor são a única mercadoria útil e verdadeiramente indispensável.
O vendedor infatigável apregoa:
— "O melhor divertimento para as crianças!"
E em torno do homem loquaz os menininhos pobres fazem um círculo inamovível de desejo e espanto.
Na feira do arrabaldezinho
Um homem loquaz apregoa balõezinhos de cor:
— "O melhor divertimento para as crianças!"
Em redor dele há um ajuntamento de menininhos pobres,
Fitando com olhos muito redondos os grandes balõezinhos muito redondos.
No entanto a feira burburinha.
Vão chegando as burguesinhas pobres,
E as criadas das burguesinhas ricas,
E mulheres do povo, e as lavadeiras da redondeza.
Nas bancas de peixe,
Nas barraquinhas de cereais,
Junto às cestas de hortaliças
O tostão é regateado com acrimônia.
Os meninos pobres não vêem as ervilhas tenras,
Os tomatinhos vermelhos,
Nem as frutas,
Nem nada.
Sente-se bem que para eles ali na feira os balõezinhos de cor são a única mercadoria útil e verdadeiramente indispensável.
O vendedor infatigável apregoa:
— "O melhor divertimento para as crianças!"
E em torno do homem loquaz os menininhos pobres fazem um círculo inamovível de desejo e espanto.
on Belas Artes
A melhor forma de começar a segunda-feira é guardando um tempinho para a arte. Hoje gostaria de falar sobre Di Cavalcanti (1897-1976), participante do movimento modernista em São Paulo no começo do século XX e um dos célebres filhos do Largo São Francisco. Di Cavalcanti é um pintor especial porque soube retratar o Brasil de forma única, com estilo próprio, seja na escolha dos temas, seja na representação, seja na técnica empregada. Recebeu uma grande influência do cubismo e dos muralistas mexicanos, cuja maior expressão é Diego Rivera. Deixo obras de Di Cavalcanti e uma belíssima tela de Diego Rivera que adoro. Boa semana a todos! Força!
A tela acima chama-se Mulheres na Janela. A seguir, o Baile Popular.
Por fim, uma das telas do mexicano Diego Rivera, que influenciou a obra de Di Cavalcanti.
on Cinema, Literatura Estrangeira
O italiano Giorgio Bassani me fez companhia durante toda esta semana de trabalho mais puxado. O Jardim dos Finzi-Contini foi publicado por Bassani em 1962 e tem um teor autobiográfico. Nele, o autor narra o verão de 1938 com a companhia de Micòl e Alberto, os irmãos da abastada família judaica dos Finzi-Contini. Um ótimo livro para entender como a caça aos judeus começou, aos poucos, anos antes do início da 2ª Grande Guerra na Europa, e como os clãs de judeus reagiram a esse processo de progressiva exclusão. A questão histórica é apenas o pano de fundo, o conflito principal da obra é a conturbada relação do protagonista com a italiana Micòl, da infância à idade adulta. A história foi transformada em filme por Vittorio de Sica, com o mesmo nome, na década de 1970. Planejo assistir em breve! Deixo-os com um trecho do romance e o poster do filme para a versão francesa. Afinal, quem de nós não tem o mesmo "vício" pelo passado que Micòl? Ótima leitura e bom domingo a todos.
“Para mim, assim como para ela, o passado tinha mais importância do que o presente, e a recordação era mais importante do que a coisa possuída. Diante da recordação, toda posse só pode parecer decepcionante, banal, insuficiente... Como ela me compreendia! Ela também sentia igualmente o meu anseio de que o presente se tornasse logo passado para poder amá-lo e fantasiá-lo ao meu modo. Este era o “nosso” vício: o de seguir adiante com a cabeça sempre voltada para trás.”
* O Jardim dos Finzi Contini foi reeditado em português pela Editora Record em 2008, com tradução de Paulo Lemos, na ótima coleção "Grandes Traduções".
* O Jardim dos Finzi Contini foi reeditado em português pela Editora Record em 2008, com tradução de Paulo Lemos, na ótima coleção "Grandes Traduções".
Charles Baudelaire foi um poeta parisiense nascido no século XIX, autor da obra símbolo do Romantismo francês, As Flores do Mal. Um poema para trazer cheiros exóticos à nossa noite de sábado.
Perfume Exótico
Por Charles Baudelaire
Quando eu a dormitar, num íntimo abandono,
Respiro o doce olor do teu colo abrasante,
Vejo desenrolar paisagem deslumbrante
Na auréola de luz d'um triste sol de outono;
Um éden terreal, uma indolente ilha
Com plantas tropicais e frutos saborosos;
Onde há homens gentis, fortes e vigorosos,
E mulher's cujo olhar honesto maravilha.
Conduz-me o teu perfume às paragens mais belas;
Vejo um porto ideal cheio de caravelas
Vindas de percorrer países estrangeiros;
E o perfume subtil do verde tamarindo,
Que circula no ar e que eu vou exaurindo,
Vem juntar-se em minh'alma à voz dos marinheiros.
Respiro o doce olor do teu colo abrasante,
Vejo desenrolar paisagem deslumbrante
Na auréola de luz d'um triste sol de outono;
Um éden terreal, uma indolente ilha
Com plantas tropicais e frutos saborosos;
Onde há homens gentis, fortes e vigorosos,
E mulher's cujo olhar honesto maravilha.
Conduz-me o teu perfume às paragens mais belas;
Vejo um porto ideal cheio de caravelas
Vindas de percorrer países estrangeiros;
E o perfume subtil do verde tamarindo,
Que circula no ar e que eu vou exaurindo,
Vem juntar-se em minh'alma à voz dos marinheiros.
O bahiano João Ubaldo Ribeiro nasceu em 1941 e é um dos mestres da nossa literatura. Autor do romance Sargento Getúlio, personagem célebre, João Ubaldo cativa pela sua prosa refinada, mas leve, de observação das gentes. Deixo o trecho inicial de um conto; consegui ouvir o gotejar da água nas plantas. Para quem interessar ler o restante, ele está acessível no site da Academia Brasileira de Letras.
Amleto Ferreira
Por João Ubaldo Ribeiro
“Choveu a semana toda e amanheceu um dia tão feio quanto os precedentes. Às cinco da manhã, antes de passar a meia hora costumeira trancado no gabinete diante de uma bacia esmaltada e de um gomil cheio de água alfazemada, areando os dentes e lavando a cabeça, que havia atravessado a noite untada por uma camada espessa de caldo de babosa embaixo da touca para amaciar o cabelo, Amleto Ferreira entreabriu a janela e inspecionou seu jardim com desagrado. Quase sempre escuro sob a fronde emaranhada das árvores, que cobria uma conglomeração cerrada de folhas e ramagens de plantas baixas, o jardim estava ainda mais penumbroso, uma floresta gotejante, grandes bagos de chuva esparrinhando a água dos tanquinhos, onde até mesmo os uapés, as ervas-de-santa-luzia, as damas-do-lago, as jaçanãs, as jipiocas retorcidas como novelos de sucuris e as outras vegetações da água estavam excessivamente molhadas, afogadas na molúria que tornava tudo úmido, escorregadio e lamacento.”
Thomas Eliot foi um poeta norte-americano radicado em Londres, nascido no final do século XIX. Um grande representante do Modernismo na literatura de língua inglesa. Também dramaturgo, Eliot tem diversas peças de teatro publicadas, no Brasil, pela Cosac Naify. O post nasceu do pedido do aluno Rômulo, que se revelou um amante da poesia de Eliot. Eis-me aqui cumprindo a promessa. Boa sexta a todos!
Manhã à Janela
T.S. Eliot
Há um tinir de louças de café
Nas cozinhas que os porões abrigam,
E ao longo das bordas pisoteadas da rua
Penso nas almas úmidas das domésticas
Brotando melancólicas nos portões das áreas de serviço.
As ondas castanhas da neblina me arremessam
Retorcidas faces do fundo da rua,
E arrancam de uma passante com saias enlameadas
Um sorriso sem destino que no ar vacila
E se dissipa rente ao nível dos telhados.
(Tradução: Ivan Junqueira)
on Leitura
A arte nos torna seres humanos melhores, ao acessar os espaços mais sutis da nossa sensibilidade e nos fazer sorrir, chorar, sonhar. Lendo a obra Olhar, Escutar e Ler de Claude Lévi-Strauss nesta tarde num intervalo do trabalho, deparei com o trecho abaixo, atribuído a Louis-Bertrand Castel, sobre a diferença da cor e do som em seus efeitos sobre o espírito. Achei que valia a pena compartilhar.
“O próprio do som é passar, fugir, estar irremediavelmente ligado ao tempo, e dependente do movimento [...]. A cor, sujeita ao espaço, é fixa e permanente como ele. Brilha no repouso.”
on Belas Artes
William Turner foi um grande artista inglês, nascido em 1775, conhecido pelas aquarelas belíssimas. Sua obra caracteriza-se pela fluidez, leveza, com foco no estudo da luz e da cor, o que faz com que o considerem um precursor do Impressionismo na Inglaterra. Adoro seu estilo! Boa parte de sua obra pode ser encontrada exibida na National Gallery, em Londres.
Quem tiver a oportunidade de ir à National Gallery, não deixe de visitar um museu vizinho, mas subestimado, a National Gallery of Portraits! Vale a pena conhecer o rosto de Ana Bolena e as demais personalidades lá apresentadas.
Bom dia nesta quarta com o trecho de um lindo poema de Manoel de Barros.
Mundo Pequeno
Por Manoel de Barros
O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas
maravilhosas.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas
com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os
besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas
maravilhosas.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas
com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os
besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos.
ARTE DE AMAR
Por Manuel Bandeira
Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus - ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.
on Belas Artes
Marilyn Monroe ensina às moças como ler com charme. As fotos de Monroe são um oferecimento de S. Castor, via Retronaut.
Nathaniel Hawthorne é um dos grandes nomes da literatura norte-americana. Autor do romance clássico A Letra Escarlate, Hawthorne nasceu em 1804. Teve três filhos, Julian, Una e Rose, além de uma esposa adorável chamada Sophie. O trecho que deixo a vocês é retirado do texto Vinte Dias com Julian & Coelhinho, por Papai, no qual Hawthorne descreve a experiência de cuidar sozinho do filho Julian, enquanto Sophie e suas filhas partem numa rápida viagem a Boston. A leitura é maravilhosa, traduzida e publicada no Brasil pela Editora José Olympio. Muita atenção ao personagem Coelhinho, animal de estimação de Julian, a quem a genialidade de Hawthorne consegue construir uma personalidade intrigante.
“Às 11h15, Julian voltou e informa que eles não lhe agradeceram por Coelhinho e que Ellen começou a espremê-lo com muita força no primeiro minuto. Ele viu Deborah, Caroline e Ellen. Eles não entenderam, de início, que Coelhinho deveria ficar lá; e, quando Julian se afastava, perguntaram-lhe se ia deixar Coelhinho. “Ora”, disse o homenzinho, “ele vai ser de Ellen!” – ao que elas nada disseram. Ele diz, porém, que elas pareceram satisfeitas em ficar com ele. Pobre Coelhinho, temo que esteja destinado a ser um sofredor pelo resto da sua vida Ellen, segundo relato de Julian, segurou o pobrezinho por sua pele e por sua pata traseira, mantendo-o a balançar no ar e cometeu vários outros ultrajes.”
Nossos pais diziam que para nos tornar seres completos era preciso escrever um livro, plantar uma árvore e ter um filho. Meu pai, que era engenheiro, acrescentava: construir uma casa. Escrevi livros, até demais, tenho um filho e plantei uma árvore, no jardim da casa onde cresci, uma muda de pau-rosa, ou flor-do-paraíso, que havia sido esquecida ao lado de uma cova estreita e funda, uma muda frágil, com poucas folhas, mais alta do que a menininha que a salvou. A muda cresceu, transformou-se em um majestoso flamboyant, coberto de flores vermelhas. (Ana Miranda, Um Amor, uma Cabana)
E você, o que faz do seu tempo?
SEISCENTOS E SESSENTA E SEIS
Por Mário Quintana
A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são 6 horas: há tempo...
Quando se vê, já é 6ªfeira...
Quando se vê, passaram 60 anos...
Agora, é tarde demais para ser reprovado...
E se me dessem - um dia - uma outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio.
seguia sempre, sempre em frente ...
E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.
Quando se vê, já são 6 horas: há tempo...
Quando se vê, já é 6ªfeira...
Quando se vê, passaram 60 anos...
Agora, é tarde demais para ser reprovado...
E se me dessem - um dia - uma outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio.
seguia sempre, sempre em frente ...
E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.