Archive for 2013
on Cinema
Na
minha última viagem a São Paulo tive a chance de assistir ao novo filme de
Michel Gondry, chamado “A Espuma dos Dias”. A história é uma adaptação do
romance homônimo de Boris Vian e retrata a história de Colin e Chloé. A
atmosfera surrealista incomoda um pouco no começo, mas depois de alguns minutos
você já se sente parte do universo particular e colorido dos personagens.
Decidido a se apaixonar, Colin conhece Chloé com a ajuda dos amigos, quando tem
início um romance adorável. Tudo vai muito bem até que todos descobrem que
Chloé tem uma doença grave e rara: um nenúfar que cresce em seu pulmão. Linda
história, tocante, que nos remete a um universo fantástico onde cores, sons e
sentimentos atingem outra dimensão. Não pude deixar de me solidarizar com
Chick, que desenvolve uma dependência da filosofia existencialista de “Jean-Sol
Partre”. Deixo os dois trailers, o feito para o Brasil e o francês, pois
considero o francês bem mais poético em sua montagem.
P.S. Li
dois capítulos do romance de Boris Vian – que cria impossível de compreender dada
a fantasia da história – mas a obra literária consegue ser ainda melhor que o
filme. Vale a pena. Publicada no Brasil pela Cosac e Naify.
Soneto de Aniversário
Vinícius de Moraes
Passem-se dias, horas, meses,
anos
Amadureçam as ilusões da vida
Prossiga ela sempre dividida
Entre compensações e desenganos.
Faça-se a carne mais envilecida
Diminuam os bens, cresçam os danos
Vença o ideal de andar caminhos planos
Melhor que levar tudo de vencida.
Queira-se antes ventura que aventura
À medida que a têmpora embranquece
E fica tenra a fibra que era dura.
E eu te direi: amiga minha, esquece...
Que grande é este amor meu de criatura
Que vê envelhecer e não envelhece.
(Rio, 1942)
Amadureçam as ilusões da vida
Prossiga ela sempre dividida
Entre compensações e desenganos.
Faça-se a carne mais envilecida
Diminuam os bens, cresçam os danos
Vença o ideal de andar caminhos planos
Melhor que levar tudo de vencida.
Queira-se antes ventura que aventura
À medida que a têmpora embranquece
E fica tenra a fibra que era dura.
E eu te direi: amiga minha, esquece...
Que grande é este amor meu de criatura
Que vê envelhecer e não envelhece.
(Rio, 1942)
Um showzinho de uma das minhas bandas preferidas, Kings of Convenience, em Paris, para deixar tocando como música de fundo nos dias de trabalho repetitivo.
Paris é
a cidade Luz, celebrada por poetas e artistas como a capital da beleza, do amor
e do encantamento. É uma festa permanente, dinâmica, “ambulante”, como diria
Hemingway. Reduto da arte, a “república das letras”, Paris recebeu nas décadas
de 20 e 30 do século XX centenas de filósofos, escritores, pintores interessados
em viver a experiência parisiense. Deixo hoje um breve trecho de uma carta de Julio
Cortázar, escrita em Paris, publicada no número 9 da revista literária Serrote.
“Não pense que estou triste, Paris é tão
bonita! Aqui até a tristeza vira uma atividade estética. De maneira que talvez
eu esteja triste, mas estou aprendendo a depositar essa melancolia nas muitas
coisas belas que me rodeiam. Gostaria de poder mostrar a você, por exemplo, um
entardecer na pont du Carrousel. Eu estava vindo do Louvre com uma amiga e
paramos para olhar a Notre-Dame, ao longe, em meio a uma bruma azul. Então, em
menos de um minuto, aconteceu o milagre, a loucura absoluta. Os lampiões a gás
se acenderam de repente, e a pedra dos parapeitos, por uma misteriosa mistura
de ar e luz, ficou intensamente rosa. Nós a olhávamos, mudos. Então vimos que a
proa da cité e os edifícios distantes tinham passado instantaneamente para um
violeta profundo, e ao mesmo tempo o rio estava verde, um verde cheio de ouro.
Eu fechei os olhos, desesperado ao perceber que aquilo não podia durar, que
aquela coisa veneziana ia se degradar instantaneamente e se perder...Mas durou,
dois ou três minutos, tempo suficiente para ver as primeiras estrelas subindo
ao céu.”
Vamos começar nossa programação carnavalesca com uma música do Chico Buarque. Afinal, amar é crime e sambar é pecado? Bom carnaval, amigos!
Gorjeios
Manoel de Barros
Gorjeio é mais bonito do que canto porque nele se
inclui a sedução.
É quando a pássara está namorada que ela gorjeia.
Ela se enfeita e bota novos meneios na voz.
Seria como perfumar-se a moça para ver o namorado.
É por isso que as árvores ficam loucas se estão gorjeadas.
É por isso que as árvores deliram.
Sob o efeito da sedução da pássara as árvores deliram.
E se orgulham de terem sido escolhidas para o concerto.
As flores dessas árvores depois nascerão mais perfumadas.
inclui a sedução.
É quando a pássara está namorada que ela gorjeia.
Ela se enfeita e bota novos meneios na voz.
Seria como perfumar-se a moça para ver o namorado.
É por isso que as árvores ficam loucas se estão gorjeadas.
É por isso que as árvores deliram.
Sob o efeito da sedução da pássara as árvores deliram.
E se orgulham de terem sido escolhidas para o concerto.
As flores dessas árvores depois nascerão mais perfumadas.
on Reflexos
Mês
após mês, no ano de 2012, eu alimentei a fantasia de que haveria uma vida após
depósito da tese. Um mundo de possibilidades se abriria: o tempo, elástico,
seria bastante para cuidar do corpo, da cabeça, para dormir mais e passar mais
tempo com os amigos. Eu poderia usar o tempo fora do trabalho com qualquer
coisa que não fosse trabalho. Um tempo livre. Ouvir música, fazer yoga, ajustar
aquela pia do banheiro que precisa de um reparo, cuidar da reforma do gesso do
teto, enfim, a vida-nossa-de-cada-dia, “sem mistificações”. Um tempo para mim.
Essa ilusão não resistiu aos primeiros dias depois que eu consegui, finalmente,
colocar um ponto final no texto, imprimir e entregar na universidade o filho
pronto – cheio de imperfeições, jogado à hostilidade da vida fora do gabinete.
A sensação de urgência está aqui, minuto após minuto. Seja como ideia – uma impressão
de que o tempo está passando, o relógio é implacável, a vida não pode ser
perdida – seja como realidade, o trabalho em si mesmo, a ida ao banco, os
imprevistos, o supermercado por fazer, as oportunidades profissionais que a
vida joga no seu colo e você não pode, simplesmente, ignorar – especialmente quando
se tem vinte e poucos anos.
A
libertação do relógio é um processo que só pode ser vivido intimamente – não depende
de um depósito, de um dia no calendário, de uma confirmação do outro. É um
estado mental. O estado de quem se permite, simplesmente, desacelerar. Estou
ensaiando um grande passo, um passo íntimo, mas fundamental: desabilitar a opção do celular que permite a
sincronização com a conta de e-mails em tempo real. Quando eu conseguir conviver
com a ideia de que os e-mails estão chegando, as pessoas estão me procurando,
os problemas continuam a existir e, não obstante, aquele intervalo entre as
três e as quatro da tarde é meu e somente meu – inclusive para vivê-lo em
silêncio – creio que eu estarei, finalmente, liberta.
on Belas Artes
Todos
nós podemos conhecer, através de livros e da internet, representações dos
quadros de Van Gogh, saber quais são as formas da Vênus de Milo e desvendar os
mistérios simbólicos das telas de Rembrandt. Apesar de se poder conhecer a
representação, nada se compara à experiência sensorial de observar a obra de
perto: a tela de Van Gogh, por exemplo, é pura luz – emana uma combinação de
cores vibrantes e dançantes que parecem ter vida própria. É a glória da beleza
que se manifesta em sua forma mais concreta: uma tela coberta por pinceladas de
tintas. Recentemente pude observar no MASP uma obra de holandês Veermer,
chamada “Mulher lendo uma carta”, que passou por um processo de restauração minucioso.
O monitor mais moderno não é capaz de reproduzir aquele tom de azul da roupa da
personagem, construído pelo pintor a partir de experimentações que remontam a
séculos e séculos de tradição.
No
vídeo abaixo, chamado A Path of Beauty, acompanhamos a experiência de visita ao
museu do Louvre. Não uma simples visita: o museu está completamente vazio. Fico
imaginando o que seria ter um museu dessa magnitude só para si – só quem já se
acotovelou nas salas do Impressionismo no Museu D’Orsay sabe como é angustiante
querer perceber cada detalhe da pintura tendo várias pessoas em volta, falando,
em movimento, distraindo a sua atenção. Não nos custa sonhar com o imenso luxo
de se ter a solidão para apreciar a arte. Acho que vale conferir o videozinho. Bom fim de semana!
Nesta última semana antes do retorno às aulas – para um professor são sempre tensos os dias que antecedem o período letivo (as turmas serão boas? Os alunos serão interessados? Tudo correrá como planejado?) – eis que me veio uma crise de sinusite! Estou inconsolável. Deixo-os com um breve poema do Saramago sobre o amor, que achei muito bonito, colhido no excelente site português Citador.
Arte de amar
José Saramago
Metidos neste pele que nos refuta,
Dois somos, o mesmo que inimigos.
Grande coisa, afinal, é o suor
(Assim já diziam os antigos):
Sem ele, a vida não seria luta,
Nem o amor amor.
Não sei
como passei tantos anos sem conhecer o escritor maranhense Josué Montello.
Nascido em 1917, o escritor tem uma obra vastíssima, distribuída entre romances,
diários, peças teatrais, crítica literária e crônicas de cotidiano. Foi membro
da Academia Brasileira de Letras e recebeu críticas entusiasmadas de nomes como
Carlos Drummond de Andrade. Como eu descobri? Da forma como eu descobri muitos
outros tesouros: “garimpando” nas prateleiras da livraria sem tempo para ir
embora. Estava em São Paulo, com tempo de sobra, numa livraria de rua que eu
adoro, até que vi aquela pilha de livros envelhecidos, publicados pela Editora
Nova Fronteira, e pensei que só podia ser algo importante a ponto de justificar
sua presença amarelada entre as obras recém-lançadas. Comecei a ler o romance Um beiral para os bentevis e fiquei
absolutamente encantada com a riqueza narrativa, os personagens, a prosa
simples e bem construída de Montello. Voltei para Fortaleza com tudo que pude
encontrar do escritor e planejo passar as próximas semanas explorando suas
páginas. Vamos ao romance que já li.
A
história se passa em São Luís, tendo um antigo sobrado da Praia Grande como
cenário principal. O enredo cobre algumas décadas na vida de uma família
tradicional do Maranhão, em diferentes gerações. A técnica empregada pelo autor
é recontar os mesmos fatos através dos distintos olhares dos personagens que o
viveram. Temos Magda, a neta, Venâncio Sezefredo, o avô religioso e severo, a
Vedete, a tia “perdida” que foi dançar no Moulin Rouge em Paris, tia Bilu, a
solteirona que cuida de todos e do sobrado, Karl, o sobrinho alemão, e até um
charlatão que se passa por parente distante. É uma história cativante, que gira
em torno da perseverança de Magda em esperar por Jerônimo – músico de talento
que foi ganhar a vida no Rio de Janeiro - mesmo contra a vontade de seu avô.
“A
primeira reação do Venâncio Sezefredo, ao saber que Magda, sua única neta, criada
por ele como se fosse filha, tinha atravessado a ponte para o bairro de São
Francisco, tarde da noite, nua, na garupa de uma motocicleta, foi também um
rasgo estranho, de quem estava fora de seu juízo: pegou num chicote, que vinha
do tempo em que passeava a cavalo nas ruas de São Luís, e saiu batendo com
raiva, com fúria, em todas as mulheres que ia encontrando”.
P.S. Faz tempo que o autor não é editado, de modo que não será fácil encontrá-lo nas livrarias, especialmente em Fortaleza, mas nada que uma busca no site da Estante Virtual não resolva! Vale a pena.
on Cinema
Quando se
tem vinte e poucos anos, a velhice é um lugar que não existe. O corpo funciona,
os planos se medem em décadas, o outro parece ocupar um papel menor no roteiro
da nossa vida. Poucos têm a sorte de envelhecer com o companheiro de uma vida,
cultivando, dia após dia, um amor que não se apaga com o cotidiano e o completo
conhecimento do outro. O filme Amor, de
Michael Haneke, é um filme sobre o morrer em vida, sobre a perda de si, mas,
sobretudo, é um filme sobre a lealdade de um amor incondicional. Anne e Georges
são dois aposentados que levam uma vida pacata. O filme dá a entender que Anne
foi uma professora de piano e a vida dos dois parece orbitar em torno da
apreciação estética: concertos, teatro, leituras compartilhadas, refeições ao
pé da janela, enquanto conversam sobre memórias da infância. Um casal adorável,
sem excessos, que habita uma casa confortável em Paris. Paredes repletas de
livros, gravuras, óleos, vinis e cds. Até que Anne começa a sofrer ausências e
sua doença se anuncia: seu corpo envelhece com uma rapidez espantosa. Embora
não seja dito, Anne parece sofrer de Alzheimer. Vamos acompanhar o cuidado de Georges,
sua dedicação, sua candura. Por que é tão triste e tocante? Porque é sem drama,
é resignado, é carinhoso: Georges cuida de Anne sem reclamar, ao mesmo tempo em
que ele também é um idoso, já debilitado e frágil. Chorei muito, passei o dia
triste, mas valeu a pena. É um filme sobre o amor que a poesia não canta: o
amor do apagar das luzes.
on Cinema
Eu
gosto de Tarantino: a estética, o humor, o roteiro. Ontem eu assisti o último
filme do diretor, Django Livre, talvez o mais sensacional de todos. O filme
merece a crítica boa que tem recebido. É um filme bastante inteligente,
profundo, sem perder as características que fazem o Tarantino ser Tarantino. No
enredo, temos a figura do dr. Schultz, um dentista alemão que ganha a vida como
caçador de recompensas na América. Schultz compra Django para que o escravo o
ajude a identificar três irmãos foragidos. Schultz é abolicionista e oferece um
trato a Django: caso ele o ajude durante o inverno a caçar seus alvos, Schultz
o ajudará a resgatar a Brunhilde, mulher de Django, uma escrava que fala alemão
(!), cativa numa fazenda do Mississippi.
Vou
tentar sintetizar o que me parece ser a maior riqueza do filme: os seus
personagens.
Schultz
é o meu preferido: a figura do europeu esclarecido (mas com a moral
suficientemente débil para ganhar a vida matando foragidos em troca de
dinheiro), que fala francês, cita Alexandre Dumas e abolicionista convicto. Schultz
não parece entender a lógica da escravatura e tem um sarcasmo calculado. Trata
a negros e brancos com igual educação, tem sempre um sorriso irônico no rosto,
mostra um incômodo profundo ao presenciar o sofrimento dos escravos e não se
encabula de receber ordens de Django à medida que a relação dos dois progride.
Para mim, o destino do personagem não poderia ser melhor, vale a pena assistir.
Monsieur
Candie, vivido por Leonardo di Caprio: profundo e paradoxal, o senhor de
escravos da temida Candyland mostra uma crueldade terrível com os escravos, ao
mesmo tempo em que está cercado por negros em todos os seus espaços de
convivência social. Obedece às ordens de Stephen (um “old Joe” fiel e atrevido),
senta com Sabá à mesa, uma escrava lindíssima e vestida a rigor, além de se
mostrar interessado em frenologia. Monsieur Candie é retratado com ironia por
Tarantino, representa o poder econômico iletrado dos senhores de escravos:
apesar de gostar de ser chamado de Monsieur e de atribuir nomes franceses aos
seus escravos, Candie não sabe uma palavra da língua, tampouco tem a mais vaga
noção de que Alexandre Dumas é negro.
Stephen:
o velho escravo exerce a função de mordomo de Candyland, mas tem a força de um
senhor. É obedecido por negros e brancos, cuida de Calvin (monsieur Candie) com
o amor de avô, espreita como um lobo os escravos e mostra uma crueldade
superior à do próprio senhor de escravos em matéria de punir os negros fugidos.
Stephen (Samuel L. Jackson está fantástico) simboliza o quanto não se pode ver
a história com maniqueísmo: um negro que cumpre uma função social tão complexa
quanto incompreensível – a do negro que pune e controla a própria raça.
Outros
pontos do filme são excelentes: a fotografia (especialmente na primeira parte,
quando Django e Schultz vão em busca de seus foragidos pelo interior do Texas)
e o humor fino do diretor (a cena da emboscada que mostra uma possível origem
para Ku Klux Klan é digna de muitas gargalhadas: mostra o quanto a causa do
grupo de extermínio era destituída de reflexão ou ideologia, mas crueldade por
crueldade, uma crueldade burra).
Enfim,
o post ficou imenso, mas não poderia ser diferente. Esse filme, que assisti há
24 horas, não saiu da minha cabeça e continua me impressionando até agora. Uma advertência
é necessária: como todos os filmes do Tarantino, nele a violência é brutal. Uma
violência que choca mais que em todos os outros filmes, porque ela não é
inventada: as brutalidades sofridas pelos escravos são extremamente críveis
como ações que os senhores de escravos, de fato, tomavam para punir seus
negros.
Já indiquei a portuguesa Inês Pedrosa a
muitos amigos, almas perdidas em lirismo que adoram ler sobre paixões
insuperáveis e amores sofridos. O meu livro preferido da escritora é o romance Nas
tuas mãos, que tem uma estrutura narrativa bastante peculiar. Três gerações de
mulheres de uma mesma família falam sobre o amor: Jenny, a avó, deixa um
diário; Camila, a mãe, um álbum de fotografias e Natália, a neta, uma coletânea
de cartas. O livro é muito tocante e mostra como cada um de nós desenvolve um
jeito muito íntimo de se relacionar com a paixão e com as desilusões da vida. Era
um pouco difícil encontrar os romances da Inês Pedrosa nas livrarias, por conta
da distribuição ruim da editora anterior. Há alguns anos ela está sendo
publicada no Brasil pela Alfaguara, uma editora fantástica: livros bem
editados, não tão caros e fáceis de achar! ;)
“Pareciam
feitos um para o outro, tu e o Pedro. Um piano e a sua partitura. Tu gostarias
de ser a música, mas eras forçado, pelo próprio excesso da sua paixão, a
permanecer instrumento de ressonância dele. Creio que foi por amor de ti que o
Pedro abafou o talento que tinha. Vários talentos, de resto; pintava o que
queria, escrevia poderosamente, e tinha uma esplêndida voz de barítono. Mas
nada disso se comparava, para ele, à perfeição compacta dos teus sentimentos.
Ele queria amar-te com a obsessiva exactidão com que tu o amavas, e esse
permanente hiato de desejos impossíveis adejava entre os dois como um sol
privativo.”
No meio
do furacão, um instante de paz: a lembrança do balanço doce de um mar sem
ondas. Minha ausência tem prazo certo.
on Crônica
Se
fosse necessário guardar o dia com uma memória, seria um gosto salgado na
pele, de uma maresia fina que encobre todas as coisas do mar. Hoje foi um dia
muito feliz. Um dia que começou na praia, com pouco sol, um céu meio encoberto,
acinzentado, as cores menos vivas. Foi um dia para enfrentar alguns medos primitivos
e irracionais ao entrar na água e sentir o pé afundar na areia molhada, uma
impressão tátil e desagradável, sob o verde escuro aquoso que sempre me remeteu
a mistérios insondáveis, marítimos, assustadores. Mas como foi boa a sensação
de estar à deriva, flutuando num caiaque tão frágil quanto leve, que parece se conciliar com a profundeza da água num flutuar permanente, e que vai de um
lado ao outro ao sabor da força do braço! Observar a orla de dentro d’água,
pensar como todas as nossas angústias se destinam a questões pequenas,
mutáveis, efêmeras, que é possível ter um instante de beleza gratuito, sem
significados ocultos, um instante que é belo em si mesmo. E esse dia que
começou na água também terminou em mar, com um pôr-do-sol feito de azuis,
lilases e cinzas, um céu mexido pelas nuvens, um céu que também estava na areia
molhada da praia, num reflexo que multiplicava as nuances de cor. E você
pára, sente a imensa beleza e a grandeza do mundo, suspira e pensa como aquele
instante é perfeito e há tanto amor no seu coração que ele transborda e é todo
plenitude. Deixo com vocês a foto desse fim de dia, tirada pela minha
companheira fiel de caminhadas, conversas e passeios, Mariana, a quem agradeço
por este dia tão feliz.
on Filosofia
Não há
como ter uma vida construída com base na razão sem a filosofia.
O sentido da vida, do amor, do bem e do justo são questões que estão presentes
nos momentos mais importantes da nossa existência, quando nos tornamos quem
verdadeiramente somos. Apesar de nosso blog ser sobre literatura, aproveito
para compartilhar com vocês uma entrevista publicada no jornal O Povo, bastante
esclarecedora, com um dos maiores professores de filosofia do Ceará e do Brasil,
o padre Manfredo Oliveira, com quem dialogo quase diariamente no silêncio do
meu gabinete, por meio da leitura de seus livros. Tenho gratidão e uma grande
admiração intelectual pelo professor, não apenas pelo seu conhecimento sobre o
saber filosófico, mas, sobretudo, pela sua didática, pela capacidade de nos fazer
entender questões bastante complexas.
Quando
estava no mestrado em Direito na UFC, pedi ao professor, que leciona na
pós-graduação em Filosofia da mesma universidade, para assistir suas aulas sobre filosofia prática como ouvinte. Na época, precisava esclarecer e
sistematizar algumas noções da filosofia moral em Kant. Ele, muito gentilmente,
disse que não havia qualquer problema e me recebeu sem alarde. Ainda lembro
claramente desse primeiro dia de contato com o professor de carne e osso: ele
simples, num púlpito de madeira bastante clerical, ao lado, uma pequena caixa
de som e um microfone de apoio (para forçar menos a voz); na sala de aula, umas
quinze almas meio perdidas e interrogantes. Foram as três horas mais
esclarecedoras dos últimos anos. Existe um Habermas antes e outro depois do professor
Manfredo, existe um Wittgenstein com o professor Manfredo e outro sem ele, de
modo que todos podem crescer um pouco a leitura dessa entrevista, na qual o
professor ressalta a importância de se resgatar a reflexão ética.
Aqui o
link da entrevista: http://www.opovo.com.br/app/acervo/entrevistas/2012/12/28/noticiasentrevistas,2957488/manfredo-oliveira-filosofo-gracas-a-deus.shtml
Para
quem quiser ler os escritos do professor, ele é publicado pela editora Vozes, pela
editora Loyola e pela editora Paulus (nada que um passeio pela Praça do Ferreira não resolva, com a parada obrigatória no pastel do Leão do Sul). Algumas obras:
Reviravolta Linguístico-Pragmática, 1996,
3ª edição
Filosofia na Crise da Modernidade, 1993,
3ª edição
Ética e Sociabilidade, 1993
Ética, direito e democracia, 2010
A
Clarice Lispector não está entre as escritoras que leio com mais frequência.
Apesar disso, todos nós temos nossos dias de Clarice, que escreve sobre o
íntimo feminino como ninguém. Hoje, enquanto pensava no que postar, olhando as
prateleiras, as lombadas dos livros, pensando nas leituras passadas, meu olhar
encontrou o dela no seu Água Viva e
eu pensei que esse é o texto perfeito para o que eu estou sentindo hoje: um
turbilhão de emoções nada claras. Li esse livro há muitos e muitos anos (a
inscrição do meu nome na contracapa data de 2001), mas lembro que foi uma
leitura tocante, a ponto das páginas estarem cheias de rabiscos de
marca-texto. O parágrafo que vai ao final do post, em especial, nunca me saiu
da cabeça. Para os que gostam da escritora, é uma boa indicação. Uma leitura
desorganizada, que não é exatamente um romance (não cabe qualquer categorização),
mas não deixa de ser uma boa leitura. Bom fim de semana, amigos.
“Também tenho que te escrever porque tua seara é a das palavras discursivas e não o direto de minha pintura. Sei que são primárias as minhas frases, escrevo com amor demais por elas e esse amor supre as faltas, mas o amor demais prejudica os trabalhos. Este não é um livro porque não é assim que se escreve. O que escrevo é só um clímax? Meus dias são um só clíma: vivo à beira.” (Clarice Lispector, Água Viva, Rocco, 1998)
on Belas Artes
No dia
2 de fevereiro acontece uma tradicional festa popular em Salvador: a Festa de
Iemanjá, a Rainha do Mar. A entidade do Candomblé é representada pela figura
arquetípica da sereia, uma mulher de longos cabelos que habita o reino das águas.
A origem mitológica do orixá representado por Iemanjá é uma pequena nação
africana, para qual representava, no dizer de João do Carmo, “o leito
primordial, de onde nassceram todos os seres vivos”. No começo de fevereiro, num dos
símbolos do sincretismo religioso no Brasil, cristãos e pagãos lotam as praias
da baía de todos os santos para lançar suas oferendas ao mar, esperando que a
mãe das águas atenda aos pedidos de seus filhos. Reconhecida como divindade
maternal e protetora, senhora da fartura e da abundância, acredita-se que, ao
agradar a Iemanjá, a senhora das águas se sinta mais inclinada a conceder a
graça da vida e de seus prazeres aos seus filhos. Com o mesmo espírito de quem
joga na Mega Sena, vamos hoje lançar mentalmente nossos barquinhos para Iemanjá,
repleto com os nossos sonhos mais inconfessáveis?
A
obra é do maravilhoso artista argentino Hector Carybé.
Update: por uma questão de rigor, atualizamos a informação, já que as festividades de Iemanjá ocorrem em 2 de fevereiro e não de janeiro! A tradicional festa do começo de janeiro é, na verdade, a procissão de Bom Jesus dos Navegantes. (:
Update: por uma questão de rigor, atualizamos a informação, já que as festividades de Iemanjá ocorrem em 2 de fevereiro e não de janeiro! A tradicional festa do começo de janeiro é, na verdade, a procissão de Bom Jesus dos Navegantes. (: