Eu
gosto de Tarantino: a estética, o humor, o roteiro. Ontem eu assisti o último
filme do diretor, Django Livre, talvez o mais sensacional de todos. O filme
merece a crítica boa que tem recebido. É um filme bastante inteligente,
profundo, sem perder as características que fazem o Tarantino ser Tarantino. No
enredo, temos a figura do dr. Schultz, um dentista alemão que ganha a vida como
caçador de recompensas na América. Schultz compra Django para que o escravo o
ajude a identificar três irmãos foragidos. Schultz é abolicionista e oferece um
trato a Django: caso ele o ajude durante o inverno a caçar seus alvos, Schultz
o ajudará a resgatar a Brunhilde, mulher de Django, uma escrava que fala alemão
(!), cativa numa fazenda do Mississippi.
Vou
tentar sintetizar o que me parece ser a maior riqueza do filme: os seus
personagens.
Schultz
é o meu preferido: a figura do europeu esclarecido (mas com a moral
suficientemente débil para ganhar a vida matando foragidos em troca de
dinheiro), que fala francês, cita Alexandre Dumas e abolicionista convicto. Schultz
não parece entender a lógica da escravatura e tem um sarcasmo calculado. Trata
a negros e brancos com igual educação, tem sempre um sorriso irônico no rosto,
mostra um incômodo profundo ao presenciar o sofrimento dos escravos e não se
encabula de receber ordens de Django à medida que a relação dos dois progride.
Para mim, o destino do personagem não poderia ser melhor, vale a pena assistir.
Monsieur
Candie, vivido por Leonardo di Caprio: profundo e paradoxal, o senhor de
escravos da temida Candyland mostra uma crueldade terrível com os escravos, ao
mesmo tempo em que está cercado por negros em todos os seus espaços de
convivência social. Obedece às ordens de Stephen (um “old Joe” fiel e atrevido),
senta com Sabá à mesa, uma escrava lindíssima e vestida a rigor, além de se
mostrar interessado em frenologia. Monsieur Candie é retratado com ironia por
Tarantino, representa o poder econômico iletrado dos senhores de escravos:
apesar de gostar de ser chamado de Monsieur e de atribuir nomes franceses aos
seus escravos, Candie não sabe uma palavra da língua, tampouco tem a mais vaga
noção de que Alexandre Dumas é negro.
Stephen:
o velho escravo exerce a função de mordomo de Candyland, mas tem a força de um
senhor. É obedecido por negros e brancos, cuida de Calvin (monsieur Candie) com
o amor de avô, espreita como um lobo os escravos e mostra uma crueldade
superior à do próprio senhor de escravos em matéria de punir os negros fugidos.
Stephen (Samuel L. Jackson está fantástico) simboliza o quanto não se pode ver
a história com maniqueísmo: um negro que cumpre uma função social tão complexa
quanto incompreensível – a do negro que pune e controla a própria raça.
Outros
pontos do filme são excelentes: a fotografia (especialmente na primeira parte,
quando Django e Schultz vão em busca de seus foragidos pelo interior do Texas)
e o humor fino do diretor (a cena da emboscada que mostra uma possível origem
para Ku Klux Klan é digna de muitas gargalhadas: mostra o quanto a causa do
grupo de extermínio era destituída de reflexão ou ideologia, mas crueldade por
crueldade, uma crueldade burra).
Enfim,
o post ficou imenso, mas não poderia ser diferente. Esse filme, que assisti há
24 horas, não saiu da minha cabeça e continua me impressionando até agora. Uma advertência
é necessária: como todos os filmes do Tarantino, nele a violência é brutal. Uma
violência que choca mais que em todos os outros filmes, porque ela não é
inventada: as brutalidades sofridas pelos escravos são extremamente críveis
como ações que os senhores de escravos, de fato, tomavam para punir seus
negros.