Archive for dezembro 2012
on Reflexos
Meus
amigos queridos, uma vez por ano temos uma permissão que não se pode
negligenciar: podemos ser absurdamente otimistas em relação ao futuro,
acreditar que todos os nossos planos se tornarão realidade e que, no ano que
chega, a vida será mais colorida e feliz. Desejo que a esperança de tempos
melhores sobreviva no espírito de todos, porque, hoje, sim, todos nós podemos
ser alegres sem culpa. Que 2013 seja melhor, que a vida seja mais musical, que
os amores mais doces e os amigos mais felizes. Um beijo da família do Ler para
Contar em todos. :)
P. S. O gato
feliz é do artista italiano Inos Corradin.
Que
imensas surpresas a vida pode nos trazer quando menos esperamos! Saulo saiu de
casa ontem com destino a uma loja de vinis no Centro, onde ele costuma garimpar
os seus discos. E eu, sem qualquer expectativa, pedi que ele trouxesse algo pra
mim. Ele me chega em casa com uma dezena de discos, cinco deles para mim:
Vinícius, Toquinho, mais Vinícius, João Gilberto. Um deles, uma preciosidade: o
disco La voglia, la pazzia, l’incoscienza,
l’allegria, que reúne Vinícius de Moraes, Toquinho e a cantora italiana
Ornella Vanoni. Quanta delicadeza! ;) Recomendo muitíssimo a todos que gostam
de bossa nova.
“Eu tive tanto medo de começar este disco.
Medo de começar alguma coisa que se ama e que forçosamente tem que terminar.
Porque ser muito feliz faz chorar, e isso tornou-me uma covarde. Eu queria muito
saber onde estão aqueles dois, enquanto eu escrevo estas coisas.
Ornella”
on Belas Artes
Resolvi
trazer um trecho de um romance que ainda estou lendo, A Felicidade Conjugal, do escritor russo Liev Tolstói, pela beleza
da descrição de uma tarde de primavera, apresentada logo no início da história.
Lendo as palavras de Tolstói, cheguei a ouvir o som dos rouxinóis e sentir o
frescor da terra molhada em um jardim bem distante, na zona rural da Rússia. A
tradução do russo é de Boris Schnaiderman, Editora 34, Coleção Leste.
“Estávamos
sentadas no terraço, preparando-nos para tomar chá. O jardim já estava todo
verde, e nos canteiros cobertos de vegetação os rouxinóis instalaram-se para
passar todo o mês de junho. As moitas densas dos lilases apareciam como que
polvilhadas de branco e roxo. Eram as flores que se preparavam para
desabrochar. A folhagem na alameda de bétulas era de todo transparente ao pôr
do sol. Havia uma sombra fresca no terraço. O denso orvalho noturno cairia
ainda sobre a erva. No quintal, além do jardim, ouviam-se os derradeiros sons
do dia, o barulho do rebanho tangido de volta; o pateta Níkon passava com um
barril pelo caminho diante do terraço, e um jato de água fria, saindo em
círculos do regador, enegrecia a terra revolvida junto aos caules das dálias e
suas estacas.”
(Referência, página 18)
Na cultura cristã, o dia 25 de dezembro
é celebrado como o nascimento simbólico da esperança de um novo tempo, um tempo
de paz e de tolerância. O Ler para Contar é um blog laico, mas consciente de
que não se pode libertar facilmente de uma cultura milenar, que permeia não só
o nosso discurso, mas nosso olhar sobre o mundo e sobre o outro. Por isso,
achamos que é possível aproveitar o espírito festivo que dezembro traz – um
espírito que representa a esperança de um tempo melhor – para desejar a todos
um bom renascimento. Que em 2013 sejamos capazes de nos emocionar mais com o
belo e de perceber a nossa dignidade como o reflexo da dignidade presente em
cada um. Sejamos mensageiros de uma cultura de paz, de respeito e de tolerância, não por força
de um mandamento celeste, mas em virtude da divindade presente, como potência, em todos
nós: a suprema virtude de ser capaz de escolher fazer o certo. Um abraço!
on Reflexos
É
meio-dia de uma sexta-feira que não me promete coisa alguma. Um dia tranquilo,
quente (como faz calor em Fortaleza nos últimos dias!), modorrento. Há duas
semanas não leio literatura (com exceção de umas páginas soltas do romance Amor, de novo, da Doris Lessing, que já
li faz uns anos). Isso se deve a uma absoluta falta de ritmo para tarefas
intelectuais (não posso dizer que é cansaço, é desconcentração): a tese também
está um pouco parada desde segunda. Essa lentidão para os afazeres, a não
produtividade, é também uma aceleração, no sentido de que estive excessivamente
ligada ao mundo virtual nas últimas semanas, uma dependência doentia do celular,
do Facebook, das consultas sem propósito ao instagram, a cabeça funcionando
freneticamente, como se milhares de pessoas estivessem numa mesma sala, falando ao mesmo tempo, sem se ouvir.
Esses hábitos geram uma sensação de urgência que nos consome em ansiedades e nos deixa, ao mesmo tempo, letárgicos, sem conseguir fazer coisa alguma. Ontem fui à livraria comprar uns presentes de natal e voltei com dois livros para mim: uma peça do Nelson Rodrigues (Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária) e uma coletânea de contos do Lúcio Cardoso, autor maravilhoso que está sendo republicado por ocasião do centenário de seu nascimento.
Meu propósito para hoje é: aproveitar minha própria companhia, conversar com as palavras do Lúcio, ouvir o ronronar do Bob, o gato leitor, deixar o celular na bolsa. Como eu disse a minha amiga Mariana, que trabalha com redes sociais (o celular é quase uma extensão do seu corpo), eu não tenho saúde mental suficiente para viver conectada o dia inteiro. Bom fim de semana, amigos!
Esses hábitos geram uma sensação de urgência que nos consome em ansiedades e nos deixa, ao mesmo tempo, letárgicos, sem conseguir fazer coisa alguma. Ontem fui à livraria comprar uns presentes de natal e voltei com dois livros para mim: uma peça do Nelson Rodrigues (Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária) e uma coletânea de contos do Lúcio Cardoso, autor maravilhoso que está sendo republicado por ocasião do centenário de seu nascimento.
Meu propósito para hoje é: aproveitar minha própria companhia, conversar com as palavras do Lúcio, ouvir o ronronar do Bob, o gato leitor, deixar o celular na bolsa. Como eu disse a minha amiga Mariana, que trabalha com redes sociais (o celular é quase uma extensão do seu corpo), eu não tenho saúde mental suficiente para viver conectada o dia inteiro. Bom fim de semana, amigos!
Estou no modo “economia de energia” por uns dias, amigos. Espero que vocês me perdoem. Deixo-os com uma música feliz.
on Cinema
Na maior parte do tempo, eu me sinto como a Charlotte do filme Encontros e Desencontros (Lost in translation). Achei que valia a pena trazer a conversa dela com o Bill. Cheia de trabalho aqui, perdoem a falta da literatura.
on Literatura Brasileira, Reflexos
Há um
poema do Carlos Drummond de Andrade em que ele fala sobre a necessidade do
outro. Que a exposição crua de sua intimidade (a maior intimidade que existe, a
das ideias) provocada palavra escrita é uma forma de estar perto, de dizer: “eu
preciso de você, venha até mim”. Escrever é, sobretudo, um modo de elaborar a
fantasia: torná-la real pelo desejo, organizá-la pela palavra, depois ir desconstruindo
lentamente aquelas que nunca poderão sair do papel. E como há ideias que são só
devaneios! Que nos matariam se ganhassem vida própria. Como diz o Drummond, as ilhas perdem os homens! Hoje estou
explodindo com algumas delas. Quase sem respirar. Os pensamentos se seguem em
uma velocidade incrível. E todo esse furacão é um fenômeno silencioso, íntimo,
desorganizado. Felizmente amanhã será um dia cheio de outros, outros que estarão do lado de fora, o lado da rua, o lado
mais fácil de administrar.
Mundo
Grande
Carlos
Drummond de Andrade
Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.
Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.
Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem... sem que ele estale.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem... sem que ele estale.
Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma, não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! Vai inundando tudo...
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos - voltarão?
Escuta a água nos vidros,
tão calma, não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! Vai inundando tudo...
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos - voltarão?
Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)
Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.
Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.
Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.
Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
- Ó vida futura! Nós te criaremos.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
- Ó vida futura! Nós te criaremos.
Amigos,
que dia feliz! Hoje é a comemoração do centenário de nascimento de Luiz Gonzaga,
o rei do baião, mestre da música popular nordestina. A sonoridade do Gonzagão
só me faz lembrar festa junina, quadrilha, canjica e as muitas cores das
bandeirinhas na noite estrelada. É uma música riquíssima, em ritmo e poesia, e
vale a pena passar o dia ouvindo o mestre hoje. Para quem se interessa pela história e pela riqueza cultural do mestre Gonzaga, a Universidade Federal do Ceará
tem como professora Sulamita Vieira, de quem tive a honra de ser aluna, uma das
antropólogas que mais estudam o material musical e humano deixado pelo mestre. Saulo, que não
é bobo, partiu ontem de Fortaleza rumo a Exu, cidade natal de Luiz Gonzaga,
para participar (e fotografar também) das festividades em comemoração ao
centenário, que vão durar uma semana. Depois vou pedir para compartilhar um
pouquinho das fotos aqui. Deixo vídeos com duas das minhas músicas favoritas. ;)
Vamos
dançar com o Lua? Chamando a quadrilha, Chico Anysio.
Uma da
manhã. Ainda lutando com as ideias sobre democracia e poder constituinte.
Como boa parte dos leitores deste blog já estão de férias e felizes da vida, pensando (os sortudos!) apenas sobre literatura e os seus amores, deixo-os
com uma música linda nesta quarta-feira.
POEMA DOS OLHOS DA AMADA
Vinícius de Moraes
Ó minha amada
Que olhos os teus
São cais noturnos
Cheios de adeus
São docas mansas
Trilhando luzes
Que brilham longe
Longe dos breus...
Ó minha amada
Que olhos os teus
Quanto mistério
Nos olhos teus
Quantos saveiros
Quantos navios
Quantos naufrágios
Nos olhos teus...
Ó minha amada
Que olhos os teus
Se Deus houvera
Fizera-os Deus
Pois não os fizera
Quem não soubera
Que há muitas era
Nos olhos teus.
Ah, minha amada
De olhos ateus
Cria a esperança
Nos olhos meus
De verem um dia
O olhar mendigo
Da poesia
Nos olhos teus.
on Cinema
O que
você faria se, por um acidente do destino, ficasse a 91 cm do seu próprio
corpo? A animação Skhizein, dirigida pelo francês Jéremy Clapin, conta a
melancólica história de Henry, que, após ser atingido por um meteorito, precisa
readaptar a vida para dar conta do distanciamento de si mesmo. É uma linda
metáfora sobre a inadequação, sobre a dificuldade de viver quando nos sentimos longe
do que fomos um dia. O filme me foi indicado pelo amigo Lucas Carvalho, a quem
agradeço pela lembrança. O Ler para Contar se faz não só de referências minhas,
mas dos amigos que me ajudam a cada dia. Um abraço em todos!
on Leitura
A
literatura nos ajuda a ampliar nosso olhar sobre o mundo e, por consequência,
sobre nós mesmos. Acabei de ler um trecho do livro A Louca da Casa, de Rosa Montero, que sintetiza muito bem o papel “libertador”
da leitura e, também, da escrita. Achei que valia a pena compartilhar. Bom
domingo, amigos!
“Para
mim, o famoso compromisso do escritor não consiste em engajar suas obras a
favor de uma causa (o utilitalismo panfletário é a traição máxima do ofício, a
literatura é um caminho de conhecimento que precisamos percorrer carregados de
perguntas, não de respostas), e sim em permanecer sempre alerta contra o senso
comum, contra o preconceito próprio, contra todas as ideias herdadas e não
questionadas que se infiltram insidiosamente em nossa cabeça, venenosas como o
cianeto, inertes como o chumbo, más ideias que induzem à preguiça intelectual.
Para mim, escrever é uma maneira de pensar; e deve ser o pensamento mais limpo,
mais livre e mais rigoroso possível”.
on Cinema
Sou uma
grande fã da Audrey Hepburn. Acho que
sua imagem exala delicadeza e frescor. Seu filme mais célebre é, sem dúvida, o Breakfast at Tiffany's, inspirado no
romance de Truman Capote com o mesmo nome. O filme é leve e ingênuo, uma
história de amor, e só de longe lembra o enredo da trama de Capote, que traz a
personagem Holly como uma garota de programa que colabora com a máfia em NY. Esse
não é o meu filme preferido da Audrey Hepburn, mas resolvi trazer a cena de
abertura para vocês porque ontem à noite, com insônia, acabei assistindo a um
dos comerciais da joalheria Tiffanys e Co. São peças publicitárias muito
encantadoras, que fazem referência a uma vida de contos de fadas, justamente
aquela desejada por Holly quando toma seu café às cinco da manhã, observando,
da rua, as vitrines da joalheria. A seguir, o comercial. Um bom fim de semana a todos!
P.S. Acho que as pessoas que pensam esses comerciais deveriam ser presas, por perpetuarem a ideia de que uma vida de conto de fadas pode existir. ;)
on Arquitetura
Há quatro anos leciono direito urbanístico e sempre reservo uma aula para exibir esse documentário para os meus alunos. Muitos deles não sabem quem é o Oscar Niemeyer, alguns jamais pararam para pensar sobre a vida como o Oscar pensou. Muitos deles nunca pararam para perceber mesmo o papel revolucionário que o concreto pode assumir em nossas vidas. Ontem ele partiu e me senti muito triste, como quem perde um avô querido. As lições mais importantes são sobre a vida. Recomendo a todos que assistam ao documentário A Vida é um Sopro, sobre a vida e a obra do Oscar Niemeyer.
Ontem
comecei a reler um dos meus romances preferidos do uruguaio Mario Benedetti: A
trégua. Na história, Martín, um homem de 49 anos prestes a se aposentar, conta
os dias para o momento que considera sua libertação de uma vida de tédio. Sua
vida é cinza, o coração está adormecido, “ressequido”, como diz o próprio
personagem. Martín conhece Laura, uma moça de 24 anos que começa a trabalhar no
seu escritório e descobre que ainda é capaz de sentir vontade de cantar. O enredo
não é algo tão inovador, ou tocante em si mesmo, algo até bem comum nos dias de
hoje, um homem mais velho que se relaciona com uma moça jovem e fresca. Mas,
afinal, o que me faz gostar tanto da história de Martín? De ontem para hoje,
reli o romance – que é curto, umas cento e poucas páginas muito boas de ler – e
acho que descobri: é sua profunda humanidade. A história é tocante justamente
por ser crível, a tristeza de um homem sem perspectivas que precisa lidar com
as dificuldades, as alegrias e as angústias de se apaixonar. E é maravilhoso
descobrir que, afinal, com algumas poucas diferenças, todos nós nos apaixonamos
pelo mesmo caminho. Ah, para os que estão buscando uma história açucarada que
traga a mensagem da redenção pelo amor, talvez não seja o livro. Chorei
muitíssimo ao terminar da primeira vez. Desta segunda, só meu coração chorou um
pouco. De pena. De tristeza. De cansaço. Acho que todos devem ler esse livro,
apesar disso, pela sua beleza simples e humana. Boa quarta!
“Um dia inteiro para nós, do desjejum em
diante. Vim ansioso por verificar, por comprovar tudo. O que aconteceu na
sexta-feira foi uma coisa única, mas torrencial. Tudo passou tão rápido, tão
natural, foi tão feliz, que não pude tomar nem uma só anotação mental. Quando
se está no próprio foco da vida, é impossível refletir. E eu quero refletir,
medir o mais aproximadamente possível esta coisa estranha que me está
acontecendo, reconhecer meus próprios sinais, compensar minha falta de
juventude com meu excesso de consciência. E entre os detalhes que quero
verificar está o tom da sua voz, os matizes da sua voz, desde a extrema
sinceridade até a ingênua dissimulação; está seu corpo, que eu praticamente não
vi, não pude descobrir, porque preferi pagar deliberadamente esse preço em
troca de sentir que a tensão se afrouxava, que seus nervos cediam lugar aos
sentidos; preferi que o escuro fosse realmente impenetrável, à prova de toda
fresta iluminada, para sentir que seus estremecimentos de vergonha, de medo,
que sei eu, se transformassem paulatinamente em outros estremecimentos, mais
quentes, mais normais, mais próprios da entrega.”
Amigos,
são duas da tarde e, depois de um almoço regado a uma leve enxaqueca, sento
diante do computador e penso que ainda falta uma tese para terminar até o fim
de dezembro. Solto um suspiro muito sentido e lembro o poema do Carlos Drummond
de Andrade. É preciso fazer tantas coisas!
POEMA
DA NECESSIDADE
Carlos
Drummond de Andrade
É
preciso casar João,
é preciso
suportar Antônio,
é preciso
odiar Melquíades,
é preciso
substituir nós todos.
É
preciso salvar o país,
é preciso
crer em Deus,
é preciso
pagar as dívidas,
é preciso
comprar um rádio,
é preciso
esquecer fulana.
É
preciso estudar volapuque,
é preciso
estar sempre bêbedo,
é preciso
ler Baudelaire,
é preciso
colher as flores
de que
rezam velhos autores.
É
preciso viver com os homens,
é preciso
não assassiná-los,
é preciso
ter mãos pálidas
e anunciar
o FIM DO MUNDO.
Nós podemos ser tudo amanhã. Certo?
Amanhã
Gonçalves Dias
Amanhã! — é o sol que desponta,
É a aurora de róseo fulgor,
É a pomba que passa e que estampa
Leve sombra de um lago na flor.
Amanhã! — é a folha orvalhada,
É a rola a carpir-se de dor,
É da brisa o suspiro, — é das aves
Ledo canto, — é da fonte — o frescor.
Amanhã! — são acasos da sorte;
O queixume, o prazer, o amor,
O triunfo que a vida nos doura,
Ou a morte de baço palor
Amanhã! — é o vento que ruge,
A procela d'horrendo fragor,
É a vida no peito mirrada,
Mal soltando um alento de dor.
Amanhã! — é a folha pendida.
É a fonte sem meigo frescor,
São as aves sem canto, são bosques
Já sem folhas, e o sol sem calor.
Amanhã! — são acasos da sorte!
É a vida no seu amargor,
Amanhã! — o triunfo, ou a morte;
Amanhã! — o prazer, ou a dor!
Amanhã! — o que val', se hoje existes!
Folga e ri de prazer e de amor;
Hoje o dia nos cabe e nos toca,
De amanhã Deus somente é Senhor!
A procela d'horrendo fragor,
É a vida no peito mirrada,
Mal soltando um alento de dor.
Amanhã! — é a folha pendida.
É a fonte sem meigo frescor,
São as aves sem canto, são bosques
Já sem folhas, e o sol sem calor.
Amanhã! — são acasos da sorte!
É a vida no seu amargor,
Amanhã! — o triunfo, ou a morte;
Amanhã! — o prazer, ou a dor!
Amanhã! — o que val', se hoje existes!
Folga e ri de prazer e de amor;
Hoje o dia nos cabe e nos toca,
De amanhã Deus somente é Senhor!