Archive for agosto 2012
Há uns dois meses, fiquei imensamente triste
com a notícia de que Gabriel García Marquez está sofrendo de uma demência que
lhe impede de escrever novas obras e que já está afetando gravemente sua
memória. Gabo já conquistou sua imortalidade, pelas histórias e pelo mundo
particular criado pelo escritor em suas obras, que estão aí a nos consolar pela
sua ausência. O romance de hoje é, sem dúvida, o meu predileto: Do Amor e Outros Demônios. Sierva María
de Todos los Ángeles é enclausurada no convento de Santa Clara sob o argumento
de estar possuída pelo demônio. Caetano Delaura é encarregado do tratamento e acaba se apaixonando pela
criatura única e mítica pintada por Gabriel García Márquez. Sem dúvida, uma das
personagens mais marcantes da obra do autor. O amor não está presente apenas na
relação de Sierva e Caetano, mas permeia o enredo e o destino de todos os
outros personagens, que representam, cada qual a seu modo, uma faceta distinta
desse estado de espírito confuso que é o amor. Boa quarta-feira!
“Filha de nobre e plebeia, a menina teve
uma infância de exposta. A mãe a odiou desde que lhe deu de mamar pela única
vez e se negou a tê-la consigo com medo de matá-la. Dominga de Adviento a
amamentou, batizou em cristo e consagrou a Olokun, divindade ioruba de sexo
incerto, cujo rosto se presume tão temível que só se deixa ver em sonhos, e
sempre de máscara. Criada no pátio dos escravos, Sierva María aprendeu a dançar
antes de falar, aprendeu três línguas africanas ao mesmo tempo, a beber sangue
de galo em jejum e a esgueirar-se entre os cristãos sem ser vista nem
pressentida, como um ser imaterial.” (MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. Do amor e outros demônios. São Paulo, Record,
2006, pg. 66)
Vamos
de poesia para um final de terça-feira mais feliz? Deixo-os com o soneto da devoção, do poetinha Vinícius
de Moraes.
Soneto da Devoção
Vinícius de Moraes
Essa mulher que se arremessa,
fria
E lúbrica aos meus braços, e
nos seios
Me arrebata e me beija e
balbucia
Versos, votos de amor e nomes
feios.
Essa mulher, flor de melancolia
Que se ri dos meus pálidos
receios
A única entre todas a quem dei
Os carinhos que nunca a outra
daria.
Essa mulher que a cada amor
proclama
A miséria e a grandeza de quem
ama
Eguarda a marca dos meus dentes
nela.
Essa mulher é um mundo! - uma cadela
Talvez... – mas na moldura de
uma cama
Nunca mulher nenhuma foi tão
bela!
Passei o final de semana acompanhada de um de meus escritores favoritos, Rubem Fonseca. Sua prosa é extremamente objetiva, direta, a temática policial está sempre ali, o mistério, a investigação, os personagens meio decadentes, ligados ao submundo e à violência. Em Bufo & Spallanzani, romance publicado em 1985, acompanhamos a história de Gustavo Flávio, escritor que se vê envolvido na investigação da morte de uma grã-fina da alta burguesia carioca, Delfina Delamare. O investigador Guedes não se convence da versão de suicídio e resolve elucidar o caso, tendo Gustavo Flávio como suspeito ao encontrar uma carta sua no porta-luvas do carro de Delfina. A narrativa é eletrizante, como tudo que o autor escreve. Recomendo muitíssimo, até para os espíritos mais delicados. Apesar da violência e da secura estarem sempre presentes, a sofisticação literária faz com que a gente desenvolva uma empatia quase que imediata pelos anti-heróis de Rubem Fonseca. Boa segunda!
“O escritor deve ser essencialmente um subversivo e a sua linguagem não pode ser nem a mistificatória, do político (e do educador), nem a repressiva, do governante. A nossa linguagem deve ser a do não conformismo, da não falsidade, da não opressão. Não queremos dar ordem ao caos, como supõem alguns teóricos. E nem mesmo tornar o caos compreensível. Duvidamos de tudo sempre, inclusive da lógica. Escritor tem que ser cético. Tem que ser contra a moral e os bons costumes”. (FONSECA, Rubem. Bufo & Spallanzani. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2011, pg. 145)
O
escritor britânico Ian McEwan, nascido em 1948, tornou-se conhecido pelo grande
público por conta da adaptação de seu romance Reparação para o cinema, de autoria do cineasta Joe Wright. O
estilo de McEwan é extremamente envolvente, seus enredos trazem um clima de
mistério e investigação próprios dos romances policiais. Uma prosa fácil de ser
lida, elegante, com personagens adultos e críveis, que nos cativam em seus
conflitos morais e existenciais do começo ao fim da história. Hoje, trago a
dica do livro Amsterdam, ganhador do
Booker Prize. Temos o entrelaçamento da história de quatro homens, Clive,
Vernon, Garmony e George a partir da morte de Molly, que esteve ligada sexual e
afetivamente a todos eles em diferentes períodos do passado. A personagem de
Molly, que só aparece através da fala dos amantes, é fundamental para o
desenrolar da trama, onde o caráter e os limites morais de cada um deles é
colocado a prova. Vale a leitura.
“Está frio demais, temos que ir embora”,
Clive ouviu alguém falar em voz alta, mas por enquanto ninguém conseguia
escapar à força centrípeta de um evento social. Ele já se perdera de Vernon,
laçado pelo proprietário de um canal de televisão.
Por fim Clive se viu apertando a mão de
George num simulacro razoável de sinceridade. “Foi uma cerimônia maravilhosa”.
“Foi muito gentil de sua parte ter vindo.”
A morte de Molly o enobrecera. A postura
grave e reservada não fazia realmente o seu gênero, que no passado tinha sido
um misto de carência e melancolia; ansioso para que gostassem dele, mas incapaz
de aceitar a amizade como algo normal. O fardo das pessoas imensamente ricas.
(McEWAN, Ian. Amsterdam. São Paulo:
Cia das Letras, 2012, pg. 17)
on Reflexos
Agora
há pouco, olhando as fotos que os amigos postaram no instagram, deparei com uma imagem muito tentadora: uma estrada reta
e vazia, iluminada pelo sol do fim de tarde. Deu uma baita vontade de estar
naquele lugar, completamente sozinha, pensando alto, ouvindo uma música bem
tranquila, protegida no conforto macio do carro. Um sintoma da minha falta de
vontade de coexistir. Um cansaço do mundo. Cansaço do outro. Indisposição para o
trabalho, ausência total de energia mental para redigir uma tese de doutorado.
Qualquer dia desses, preparo um cartaz de Fechada
para Balanço, arrumo as minhas malas, as do Saulo, coloco a bagagem no
carro, espero ele chegar do trabalho e parto para uma temporada de ausência.
Foi-se.
Ontem foi
dia dos pais, e vou evitar repetir aqui todos aqueles clichés sobre o amor, a
gratidão, etc. Cada um de nós sabe o valor do pai que tem ou teve e acredito
que os bons filhos já abraçaram – ainda que em pensamento – os bons pais. Em
homenagem ao dia, prefiro postar um trechinho do episódio 1 da crônica “O Poder
Ultrajovem”, intitulado No Restaurante,
de autoria do escritor mineiro Carlos Drummond de Andrade, que traduz muito bem
o efeito que os desejos dos filhos causam nos pais. Boa semana a todos vocês.
“ – Quero lasanha.
Aquele anteprojeto de mulher – quatro anos,
no máximo, desabrochando na ultraminissaia – entrou decidido no restaurante.
Não precisava de menu, não precisava de mesa, não precisava de nada. Sabia
perfeitamente o que queria. Queria lasanha.
O pai, que mal acabara de estacionar o
carro em uma vaga de milagre, apareceu para dirigir a operação-jantar, que é,
ou era, da competência dos senhores pais.
- Meu bem, venha cá.
- Quero lasanha.
Escute aqui, querida. Primeiro, escolhe-se
a mesa.
-Não, já escolhi. Lasanha.”
on Reflexos
Sexta é dia de música boa. Em tempos de eleições municipais e julgamento de mensalão, nada mais adequado que o sambinha de Chico Buarque chamado Homenagem ao Malandro. A letra é um primor! Bom fim de semana a todos.
Homenagem ao Malandro
Chico Buarque
Eu fui fazer um samba em homenagem
À nata da malandragem
Que conheço de outros carnavais
Eu fui à Lapa e perdi a viagem
Que aquela tal malandragem
Não existe mais
Agora já não é normal
O que dá de malandro regular, profissional
Malandro com aparato de malandro oficial
Malandro candidato a malandro federal
Malandro com retrato na coluna social
Malandro com contrato, com gravata e capital
Que nunca se dá mal
Mas o malandro pra valer
- não espalha
Aposentou a navalha
Tem mulher e filho e tralha e tal
Dizem as más línguas que ele até trabalha
Mora lá longe e chacoalha
Num trem da Central
À nata da malandragem
Que conheço de outros carnavais
Eu fui à Lapa e perdi a viagem
Que aquela tal malandragem
Não existe mais
Agora já não é normal
O que dá de malandro regular, profissional
Malandro com aparato de malandro oficial
Malandro candidato a malandro federal
Malandro com retrato na coluna social
Malandro com contrato, com gravata e capital
Que nunca se dá mal
Mas o malandro pra valer
- não espalha
Aposentou a navalha
Tem mulher e filho e tralha e tal
Dizem as más línguas que ele até trabalha
Mora lá longe e chacoalha
Num trem da Central
A
crônica “Anúncio de Casa”, do escritor Fernando Sabino, me fez lembrar de minha amiga
Mariana, que tem um gosto todo especial pelas marcas do tempo. Boa quinta-feira
a todos vocês!
“Procura-se casa para alugar ou comprar, com
três quartos, duas salas, banheiro, cozinha, quarto de empregada, demais dependências,
poder de sugestão, varanda e quintal.
Por poder de sugestão, entenda-se aquele
misterioso dom que certas casas têm de sugerir a vida dos que já moraram nela.
Não pelas manchas e estragos que lhe deixaram antigos moradores, mas exatamente
pelas marcas invisíveis que suas paredes recolheram e o tempo fixou.
Essas marcas devem nascer do soalho sob as
passadas do morador, correr ao longo das tábuas do teto aos olhos insones que
nele se distraem, participar dos próprios ruídos que ajudam a adormecer: o da
água caindo na caixa, os talidos de madeira no escuro, o rincho de uma porta ou
dos degraus da escada; devem efluir dos trincos e maçanetas, da sombra na
parede, terror de uma infância, do vento que infla a cortina. Devem, enfim,
impregnar cada canto da casa, estas marcas de tradição que ela carrega em seu
bojo como uma carga de navio, a que vai se juntar a do novo morador, dando-lhe
novo espírito, e finalmente a absorve” (SABINO,Fernando. Anúncio de Casa, in No fim dá certo, Record, 2007, pg. 134)
Poeminha Sentimental
Mário Quintana
O meu amor, o meu amor, Maria
É como um fio telegráfico da estrada
Aonde vêm pousar as andorinhas...
De vez em quando chega uma
E canta
(Não sei se as andorinhas cantam, mas vá lá!)
Canta e vai-se embora
Outra, nem isso,
Mal chega, vai-se embora.
A última que passou
Limitou-se a fazer cocô
No meu pobre fio de vida!
No entanto, Maria, o meu amor é sempre o mesmo:
As andorinhas é que mudam.
Alberto Caeiro
Se eu morrer novo,
sem poder publicar livro nenhum
Sem ver a cara que têm os meus versos em letra impressa,
Peço que, se se quiserem ralar por minha causa,
Que não se ralem.
Se assim aconteceu, assim está certo.
sem poder publicar livro nenhum
Sem ver a cara que têm os meus versos em letra impressa,
Peço que, se se quiserem ralar por minha causa,
Que não se ralem.
Se assim aconteceu, assim está certo.
Mesmo que os meus versos nunca sejam impressos,
Eles lá terão a sua beleza, se forem belos.
Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir,
Porque as raízes podem estar debaixo da terra
Mas as flores florescem ao ar livre e à vista.
Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir.
Eles lá terão a sua beleza, se forem belos.
Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir,
Porque as raízes podem estar debaixo da terra
Mas as flores florescem ao ar livre e à vista.
Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir.
Se eu morrer muito novo, oiçam isto:
Nunca fui senão uma criança que brincava.
Fui gentio como o sol e a água,
De uma religião universal que só os homens não têm.
Fui feliz porque não pedi cousa nenhuma,
Nem procurei achar nada,
Nem achei que houvesse mais explicação
Que a palavra explicação não ter sentido nenhum.
Nunca fui senão uma criança que brincava.
Fui gentio como o sol e a água,
De uma religião universal que só os homens não têm.
Fui feliz porque não pedi cousa nenhuma,
Nem procurei achar nada,
Nem achei que houvesse mais explicação
Que a palavra explicação não ter sentido nenhum.
Não desejei senão estar ao sol ou à chuva -
Ao sol quando havia sol
E à chuva quando estava chovendo
(E nunca a outra cousa),
Sentir calor e frio e vento,
E não ir mais longe.
Ao sol quando havia sol
E à chuva quando estava chovendo
(E nunca a outra cousa),
Sentir calor e frio e vento,
E não ir mais longe.
Uma vez amei, julguei que me amariam,
Mas não fui amado.
Não fui amado pela única grande razão -
Porque não tinha que ser.
Mas não fui amado.
Não fui amado pela única grande razão -
Porque não tinha que ser.
Consolei-me voltando ao sol e a chuva,
E sentando-me outra vez a porta de casa.
Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados
Como para os que o não são.
Sentir é estar distraído.
E sentando-me outra vez a porta de casa.
Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados
Como para os que o não são.
Sentir é estar distraído.
on Belas Artes
Tive
uma semana atípica, mas estou confiante que dias melhores virão. Que a nossa
segunda-feira seja bastante produtiva! Um beijo em todos. A inspiração é a obra
do pintor holandês Vincent van Gogh.